Vida Plena com Deficiência

Vida Plena com Deficiência

Salete Inês milan


A realidade da deficiência é um capítulo dos mais extremos no processo de humanização e de luta por dignidade. Em culturas mais primitivas a deficiência era motivo de descarte. A criança com deficiência era abandonada e considerada não humana...

As concepções religiosas foram, e ainda são, razões de exclusão, por considerar a doença e deficiência frutos e consequências do pecado. Os pais escondem filhos com deficiência por sentimento de culpa...

Da negação e da culpa passamos ao sentimento de lástima e dó em relação à pessoa com discapacidade (Pcd) e seus familiares, adotando a dinâmica de assistencialismo, que traz em seu bojo a mesma negação da pessoa e a torna objeto de caridade e fonte de méritos para os “bonzinhos”. A Igreja considerava a dor e o dito sofrimento participação no sofrimento de Cristo, e por isso dispensados de qualquer presença na dinâmica de evangelização.

Dentro do sistema capitalista, são considerados um peso para a sociedade por, supostamente, não colaborar com o sistema de produção (a pessoa vale pelo que produz).

Ao se concretizarem as lutas pelos direitos humanos e se classificarem os tipos de marginalização entre crianças de rua, os sem-teto, sem-terra, as domésticas etc., as Pcds nem sequer são citadas, nem por igrejas, nem por frentes de luta como mais um setor marginalizado. Até pouco tempo e em grande parte até hoje, as Pcds não existiam. Os próprios movimentos pelos direitos humanos e por libertação não incluem esse setor em seu rol de referências e atenções, apesar de somar mais de 15% da sociedade.

Já antes de 1950 existiam movimentos em que as Pcds começaram a se organizar e iniciar a busca de espaço e direitos. Foi uma luta solitária na tentativa de superação das mentalidades doloristas, pietistas e assistencialistas de reconhecimento do Ser Humano que somos, com sentimentos e desejos como todos. Com resistência e garra vamos avançando lentamente.

Para nossa reflexão e pretendendo maior sintonia com esse contexto, partilho a realidade que vivo como pessoa com deficiência.

Sou Salete Inês Milan, do Brasil. Estou com 55 anos de idade e a partir dos três anos começou minha deficiência. Usava botas ortopédicas, depois muletas, e a partir dos 20 anos estava em cadeira de rodas. Como nos anos 60 havia muitos casos de poliomielite, soube pelos médicos que meu caso era sequela de pólio. Foram muitas entradas e saídas do hospital para operações e tentativas de correção. Somente depois de nascer minha filha Luana (muito pequena apresentava as mesmas dificuldades motoras para se mover), descobri que minha deficiência não era de um diagnóstico de pólio, mas de uma enfermidade motora progressiva (Charcot Marie), que afeta os membros superiores e inferiores.

Com minha família vivíamos no campo e não havia recursos nem noção de caminhos para melhoras. Sempre tive o amor e o carinho de meus pais e irmãos, e não senti o peso de ser pessoa com deficiência.

Comecei a perceber-me diferente quando aos nove anos meu pai me mandou a um internato de monjas para ter acesso ao estudo. Nesse ambiente me senti diferente das demais, pois não conseguia acompanhar o ritmo de minhas companheiras, e era dispensada de distintas atividades, pois era a única com deficiência. Depois de três anos fui viver em uma clínica de reabilitação. Aí foi muito duro o confronto, ao conviver com as demais deficiências. Ao ver situações mais extremas e entrando na adolescência, naturalmente surgiram comparações, comentários, análises de feio e bonito etc.

A verdade é que, com ou sem deficiência, somos pessoas que sentimos, sonhamos e queremos viver. Há uma realidade externa e barreiras que vamos encontrando na estrutura física e social. Aprendi que se me fecho em mim mesma não encontro alegria, e a realidade me sufoca.

Quando nasceu minha filha e apareceu a deficiência dela, descobri que minha deficiência é fruto de uma enfermidade hereditária. Com isso passei a uma etapa de sentimento de culpa. Voltaram os questionamentos dos motivos. “Justamente comigo e não com os demais?”, “minha filha e eu?”...

Depois de partilhar com amigos e muito refletir, cheguei à conclusão de que a vida é a que se tem e do jeito que é, e não do jeito que a imaginamos. Decidi envolver-me na luta das pessoas com deficiência e ensinar minha filha com atitudes e participação. Não importa qual seja a nossa realidade, pois nela somos chamados a fazer nossa parte e contribuir.

Hoje tenho certeza de que a participação no Movimento da Fraternidade Cristã de PcD me fez cultivar muitas amizades que dão sentido à vida. A participação me despertou. Luta não apenas pelos interesses pessoais, mas no reconhecimento de que a luta pessoal de cada um é a luta de todos pela vida. Queremos unir-nos com todos os marginalizados e discriminados para juntos lutarmos por vida e dignidade. E sabemos que somente juntos somos mais...

Minha filha assumiu sua realidade, estudou e hoje tem seu trabalho, e vive com dignidade, pois assumiu sua realidade e seus valores como eu, reconhecendo que somos o que somos, e chamadas, como todos, a ser felizes.

Estamos conscientes de que não queremos ser objetos de caridade, queremos ser reconhecidos como pessoas que somos, com direitos e deveres, despertando nossa consciência crítica para discernir entre o que vale a pena e o que não vale. E, como protagonistas, assumir nosso lugar na história.

Convocamos todas as pessoas com alguma deficiência a tomar consciência do seu valor, buscar relações de amizade e, unindo-se aos demais, colaborar na construção de um mundo sem discriminação e de dignidade para todos.

 

Salete Inês milan

Chapecó, SC