Um outro mundo possível. sobre novas relações de gênero

Um outro mundo possível
sobre novas relações de gênero

Ivone GEBARA


Há problemas sociais que percebemos à primeira vista. Não precisamos de muito esforço para notar a fome das crianças, o desemprego, a falta de saúde dos pobres. Não precisamos muito esforço para descobrir que o mundo vive guerras impressionantes, expressões do poder imperialista de alguns povos sobre outros. Não precisamos de muito esforço para perceber a preca-rie-da-de dos transportes coletivos em algumas cidades e a ausência de saneamento básico.

Entretanto, quando se trata de rever as relações sociais que são também relações de poder, entre mulhe-res e homens nem sempre percebemos essa problemática à primeira vista. Estamos de tal maneira habituadas/os a viver certos papéis sociais que achamos que eles fazem parte da própria natureza humana. Achamos que os modelos de ser homem e ser mulher sempre foram assim e, portanto, devem ser assim. Raramente pensamos nos processos de evolução histórica e cultural, nos encontros entre culturas, nas influências recíprocas. Raramente nos damos conta de forma existencial que são os diferentes grupos e pessoas nas diferentes relações que criam suas interpretações antropológicas e sociais.

Quando começamos a refletir sobre as relações entre mulheres e homens, nos damos conta que quase que, espontaneamente, nossas sociedades atribuem mais poder, maior valor, maior força organizativa, maior força política aos homens e deixam as mulheres em segundo plano. Nós mesmas, mulheres, muitas vezes acolhemos esta condição particular como se a natureza ou as forças divinas tivessem feito uma divisão de capacidades e papéis, de forma que só nos resta aceitar com submissão a evidente força masculina. A radicalização dessa forma de organização social marcada pela ausência do feminino nos níveis decisórios mais amplos começou a acentuar uma série de disfunções sociais, assim como a percepção de que essa maneira de organizar-se socialmente era geradora de grandes injustiças. As primeiras a detectar e a denunciar essas formas de injustiça e violência contra as mulheres foram as feministas, organizadas em movi-mentos sociais com o objetivo de afirmar a igual digni-dade das mulheres e sua integral cidadania. Por essa razão, uma abordagem de qualquer problema a partir da noção de gênero deve situar-se nesse processo de reivindicação das mulheres de uma nova relação social entre mulheres e homens. Não se trata pois de uma abordagem só para mulheres, mas de uma abordagem que revela a intimidade de nossas relações de poder tanto em nível público quanto em nível doméstico. Não se trata de um ajuste das mulheres a esta estrutura política e social hierárquica dominada pelos homens como se fosse uma concessão ou como se fosse o ideal a ser seguido, mas sim de juntas e juntos criar novas relações de compreensão e de convivência.

Hoje, muitos movimentos sociais acreditam que é inaceitável a manutenção da desigualdade antropológi-ca, social e política que nos dirigiu durante séculos e buscam caminhos para a construção de novas relações. Estamos percebendo que uma nova compreensão do ser humano – mulher e homem – se impõe. E que essa nova compreensão deve acompanhar a criação de uma nova ordem social e política nacional e internacional. Novas relações mundiais implicam em novas relações de gênero. Novas relações mundiais implicam numa nova compreensão do lugar do ser humano – mulheres e homens – no conjunto das instituições sociais e nos ecossistemas. Entretanto, sabemos bem, que um novo mundo de relações não acontece de uma hora para outra. Ele vai se preparando lentamente ao longo de séculos de História até que passa a ter maior visibilidade e passa a integrar os novos comportamentos sociais. Dependendo dos grupos, das pessoas, dos tempos e dos interesses a sensibilidade para um ou outro problema social é maior ou menor. A questão da igualdade entre homens e mulheres, a igualdade de gênero, sobretudo em relação aos direitos, tem sido uma longa luta sobretudo encabe-çada pelas mulheres de muitas partes do mundo. Verifi-camos, entretanto, uma forte resistência às mudanças antropológicas e culturais ou, em outros termos, às mudanças em relação a compreensão de nossa própria identidade histórica. Este é um dos desafios que estamos enfrentando, já há mais de cem anos, se começarmos a contar desde os primeiros esforços feministas mundiais.

Nossas diferentes culturas latino-americanas e até se poderia dizer, culturas de todo o mundo, são marcadas por uma compreensão hierárquica do ser humano. Esta parece ser uma compreensão onipresente. O valor do ser humano é prédeterminado a partir de sua riqueza, seu lugar social, sua cor e seu sexo. E, nessa escala hierár-quica de valores, as mulheres quase sempre foram consi-deradas antropologicamente e socialmente inferiores. Não podemos agora analisar as causas dessa considera-ção. Suas raízes são profundas e as hipóteses interpreta-tivas as mais variadas. O que mais nos importa neste momento é perceber que uma espécie de reviravolta na própria compreensão que temos de nós mesmas/os está acontecendo. Em diferentes partes do mundo, as mulhe-res não só reivindicaram o direito ao voto, mas à partici-pação política nas grandes decisões de seus respectivos países. Elas reivindicaram, igualmente, o direito à autono-mia e escolha, isto é, o direito de não serem pre-definidas a partir dos papéis que a sociedade patriarcal e hierárquica lhes determina. Elas contestaram os modelos masculinos de pensar o mundo, explicitando o caráter particularista da ciência masculina. Foram capazes, em diferentes lugares, de salvaguardar a memória de seus filhos e esposos mortos em guerras, dizendo Não à violência das armas e reclamando corajosamente uma atitude de esclarecimento e ressarcimento de danos, aos poderes constituídos. Elas vêm, igualmente, revendo a própria compreensão de suas culturas e das diferentes expressões religiosas que legitimaram a dominação feminina de diferentes maneiras. Uma nova maneira de pensar e viver as diferentes tradições religiosas têm crescido em diferentes lugares do mundo mesmo que as instituições religiosas oficiais tenham dificuldades de aceitá-las. E, não se pode esquecer que as instituições religiosas fundadas em estruturas patriarcais de pensa-mento e comportamento são as que mais têm resistido ao diálogo com os movimentos feministas e às mudanças em curso.

Apesar disso, muitos são os grupos de mulheres que buscam resgatar a auto-estima feminina em vista de um aumento de poder social e político que poderá criar rela-ções mais justas em todos os níveis da vida humana. Este processo tem convidado também diferentes grupos de homens a pensarem de novo sua identidade. E isto porque as relações humanas são marcadas por uma reci-procidade de relações e uma interdependência nos com-portamentos. A revolução antropológica provocada pelas mulheres não pode ser ignorada pelos homens. Não nascemos para viver em guetos separados, ou em ilhas isoladas, mas para construir a partir de nossas semelhan-ças e diferenças o mundo que queremos. Por essa razão, muitos homens têm não só refletido a questão de gênero como fazendo parte de sua vida quotidiana mas têm procurado em grupos repensar sua nova identidade pessoal e social. Nessa linha, mulheres e homens fazem parte da construção de um novo mundo, um novo mundo de justiça possível. Trata-se, portanto, de criar relações mais democráticas e igualitárias, relações que devem estar presentes como fermento em todas as nossas atividades. Assim, todas as nossas atividades, nossos pensamentos e ações devem ser tocadas pelo fermento da igualdade e das novas relações democráticas.

Escrever sobre isso pode parecer fácil. Entretanto, a dificuldade maior é sem dúvida a prática cotidiana. Nosso corpo foi de certa forma moldado para repetir a dança patriarcal em nossos usos, costumes, pensamen-tos, crenças e concepções da vida. Muitas vezes, tenta-mos novos passos, mas é como se nossos passos só sentissem segurança nas formas tradicionais de sociali-zação de nosso corpo. Queremos o novo, mas nosso corpo parece repetir os velhos movimentos aprendidos secularmente. Por isso, um austero exercício de mudança se impõe a nós. Nossas crenças em um mundo diferente deveriam passar para os movimentos de nosso corpo mesmo se de uma forma lenta e imperfeita. As mudanças culturais, sabemos disso, se dão de forma lenta, ora constante, ora interrompida, ora imprevisível. O mesmo acontece com os outros níveis da vida humana. Mudan-ças econômicas e políticas mais solidárias e democráti-cas não acontecem por decreto. Habituadas aos sistemas hierárquicos autoritários temos dificuldade de integrar existencialmente as novas formas de exercício do poder. Temos dificuldade, por exemplo, de acolher na vida coti-diana novos comportamentos éticos que têm a ver com o respeito ao bem comum, com o cuidado com a natureza e o nosso meio ambiente. Seguimos o comportamento habitual das massas sem perceber que toda a mudança exige esforço e disciplina. Por isso, todas as iniciativas de mudança precisam ser respaldadas por grupos ou comunidades capazes de nos sustentar nas mudanças que queremos viver. Um novo mundo a partir de uma pers-pectiva igualitária entre o gênero feminino e o masculi-no deve ter como respaldo um grupo constituído por nós mesmas/os, capaz de avaliar nossa compreensão do mundo e ajudar-nos a dar novos passos no claro-escuro de nossa história. E, além disso, devemos estar cientes de que nossos progressos não serão feitos de forma linear. Nossa história tem altos e baixos, avanços e retrocessos. O importante é acolher essa condição frágil de nossa existência histórica e apostar na ajuda mútua para que um mundo mais justo, uma nova ordem nacional e internacional sejam possíveis.

 

Ivone GEBARA

Camaraibe, PE, Brasil