Três reflexões sobre a liberdade

Três reflexões sobre a liberdade

Jon Sobrino


1. Padre Arrupe e Dom Oscar Romero: homens livres

Refiro-me à liberdade pessoal, à capacidade do ser humano de poder trabalhar segundo sua vontade ao longo da vida, de onde se deriva a responsabilidade de seus atos, sejam eles bons ou maus.

O Padre Arrupe e Dom Romero foram homens bons, homens de fé e justiça, de esperança e práxis, de graça que recebe e de responsabilidade que atua. Mas, ao dizer que foram homens livres, queremos acrescentar algo mais: mantiveram-se no mundo real, sem sair dele, em meio às dificuldades, oposições e ataques, com frequentes grosserias, difamações dos poderosos de fora e – em algumas ocasiões – abandono de seus irmãos de dentro, bispos e provinciais. Nunca se ostentaram ou falaram de si mesmos. Nunca pensaram neles antes que nos demais. Nem pensaram que o mal se cura com outra coisa que não seja o bem. Faziam verdadeira a linguagem paulina: “não tenham, entre vocês, mais dívida do que a do amor”. E faziam verdade o que, penso eu, é viver já como pessoas ressuscitadas na história: “nada é obstáculo para fazer o bem”. A esse modo de ser e atuar, chamo de liberdade.

Acrescentamos algo a dizer sobre como Arrupe e Romero foram homens livres? Creio que ao menos explicitamos matrizes de qualidades do ser humano que geralmente não são levados em conta e que são importantes. Homens como eles, mulheres como Ita e Maura, mártires de Chalatenango, não somente viveram com liberdade, mas também viveram em plenitude, triunfando sobre qualquer amarra que limite aos humanos. E, a partir daí, a lógica de falar de liberdade ao falar da ressurreição de Jesus, ainda que Jesus já foi homem livre em vida: “nada me tira a vida, eu a entrego livremente”.

Voltando à liberdade e ressurreição, eis o que escrevi: “A liberdade reflete o ‘triunfo’ do ressuscitado, não porque nos distancia de nossa realidade material, mas porque nos introduz na realidade histórica para amar sem que nada dessa realidade seja obstáculo para ele. A pessoa livre, cristãmente falando, é a que ama e, no final das contas, somente ama, sem que nenhuma outra consideração o desvie do amor. Dito em linguagem paradoxal, liberdade é atar-se à história para salvá-la, mas – segundo a metáfora – de tal maneira que nada na história amarre e escravize para não amar”.

Não estar amarrado a nada – não somente ao mal, tampouco ao tradicionalmente bom –, senão estar desamarrado de tudo, é o que me impactou em Romero e Arrupe; viveram uma liberdade primordial, que não é comum. Usando palavras de Casaldáliga, não tiveram nada por absoluto, “somente a Deus e a fome”. Foram pessoas de espírito de geometria, mantendo lucidez para entender as coisas e atuar com eficácia. Mas, com perdão de Pascal, se deformo seu pensamento, maior foi seu esprit de finesse, sua delicadeza com qualquer ser humano.

Assim foi o Padre Arrupe. Em tempos de plenitude, com simpatia e otimismo perene e, sobretudo, sempre com presunção de bondade para com os demais. Prostrado na cama e encolhido, mas com o sorriso de quem não tem onde agarrar-se, pedia ajuda. E sempre com sinceridade. “Sou um pobre homem”, dizem que falava.

Assim foi Dom Oscar Romero. Em tempos de plenitude, com esperança indestrutível, com alegria: “com este povo, não custa ser bom pastor”; também com a aceitação de sua debilidade psicológica, que o levava a buscar ajuda profissional, quando o sentia necessário. Nos últimos meses, com “temor, acerca dos riscos de minha vida”, e com a dor por sua “situação conflitiva com os outros bispos”.

Enquanto podemos julgar, e respeitando o mistério que envolve os humanos, para o Padre Arrupe e Dom Romero nada foi amarra para não fazer o bem e para buscá-lo sempre de diversas formas. Foram livres.

2. “Ouvi seus clamores e desci para libertá-los”

São palavras de Deus que acolhem palavras de seres humanos oprimidos. E estes têm uma esperança. “Virá o dia em que todos, ao levantar a vista, veremos nesta terra reinar a liberdade”. São cantos de escravos sob o Império Romano, de negros nas plantações de algodão, de indígenas em Abya Yala, roubados de ouro, cultura e religião, de dignidade e vida. Hoje, o Império continua ampliando no mundo. O mercado rouba e aniquila milhões.

O Papa Francisco tem denunciado esta crueldade com um Midrash de um rabino da Idade Média. “Na época da construção da torre de Babel, lhes custava muito fazer os tijolos. Tinham que buscar o barro, amassá-lo, por na palha, armá-lo, cozinhá-lo. Então, subiam os tijolos à torre, para fazê-la mais alta. E quando caía um tijolo, era um drama, praticamente um problema de Estado. Havia custado tanto que o ladrilho era um tesouro. Mas se um operário caía, não era nada”. O rabino o disse muito bem, e o Papa o traduziu. “Este Midrash reflete o que está se passando agora. Há desequilíbrio nas inversões financeiras: grande drama, grandes reuniões internacionais, todos se movimentam. Mas a pessoa morre de fome, morre de enfermidade. E, bem, que Deus a ampare! As palavras são duras, mas creio que são exatas: vivemos numa cultura de descarte. O que não serve, se descarta, se joga no lixo. Esta é a crise que vivemos.” Não poderia falar mais claro, nem um rabino, nem um papa.

Com essa clareza, a teologia falou, há meio século, na América Latina. Era a Teologia da Libertação, que desenterrava o tema secular da liberdade e o historiava como libertação: libertar da morte e da injustiça os povos oprimidos. Romper esse silêncio foi seu grande mérito. E com a “libertação”, essa teologia tem desenterrado outras realidades que haviam permanecido num clamor silencioso. Antes de tudo, a realidade do pecado, massivo, histórico, estrutural: roubo e depredação, violência e assassinato, violações do sétimo e quinto mandamento. Prolifera no planeta, na Mesoamérica e no Congo. O planeta busca sanar um banco enfermo – e a seus banqueiros. Sem tetos e desempregados terão que esperar. E silencia a Deus. Sob specie contrarii, ao não falar de idolatrias, culto a ídolos que exigem vítimas para subsistir.

E, diretamente, ao não falar do Deus da vida, o que ama o pobre, certamente, mas que, antes, como disse Puebla, vem em sua defesa contra seus agressores. Nem sequer Aparecida se atreveu a mencionar o conflito como realidade central na vida de Jesus, no que se inseriu. E ao fazê-lo em favor de uns e contra os outros, o mataram. E igualmente se silencia aos mártires da justiça, que vivem e morrem como Jesus. Infinidade de mártires latino-americanos, homens e mulheres, têm sido silenciados.

Essa teologia, por ser da libertação, sejam quais forem suas mediações, é também mais bíblica e jesuânica, e é mais latino-americana. Não é imparcial, senão comprometida. Não é distante, senão inserida – “se faz num escritório, mas não a partir de um escritório”, dizia Ellacuría. Não busca paz para ela, e sim corre riscos, e às vezes cai na mira de mãos civis e eclesiásticas. Não busca êxito, exaltação e apoteose – conceito este de êxito que não é cristão –, e sim busca o serviço eficaz. Nesta secção, temos falado de libertação, mas pode convergir muito bem com a liberdade da anterior. Basta recordar o que fizeram Arrupe e Romero pela libertação histórica. E se isso não deixar claro, recorde-se que esses dois homens livres tiveram como inimigos aos mesmos inimigos da libertação. E o aceitaram por princípio: “não lutaremos pela fé e justiça sem pagar um preço”.

3. “A verdade os fará livres”, disse Jesus

Esta é nossa terceira reflexão, pois a mentira é imensa, mas desconhecida. González Faus pergunta se, na evolução, está surgindo o homo mentiens, o ser humano mentiroso. Se for assim, nosso ambiente social está construído com tijolos de mentira.

Somente dois exemplos. As crianças que, anualmente, morrem de fome são milhões, disse Jean Ziegler; mas esses dados se repetem rotineiramente, sem que o mundo se dê por convencido. E quando já não é possível apelar para a ignorância, então se apela para a mentira. A guerra do Iraque não obedeceu a um erro de motivação, mas sim à cruel mentira, denuncia Le Monde Diplomatique. Parece que despertara o fantasma de Goebbels, ministro da propaganda nazista: “uma mentira, repetida mil vezes, torna-se verdade”. Nos contextos em que se instalou o politicamente correto, “o irracional se faz racional”, dizia Herbert Marcuse. “A mentira polui todo o ar que respiramos e contamina toda água que bebemos”, disse Gonzávez Faus.

Pode haver, mais ou menos manipuladamente, liberdade de imprensa, mas falta a vontade de verdade. E, com ela, morre a liberdade. Para humanizar este mundo, bastam esses três elementos da utopia da liberdade: a) ser homens e mulheres livres; b) lutar contra a escravidão; e c) entregar-se à verdade, sem aprisioná-la.

 

Jon Sobrino

UCA, San Salvador, El Salvador