Sobre Marx, Piketty e os lírios do campo

Sobre Marx, Piketty e os lírios do campo

Nicolau João Bakker


O economista francês Thomas Piketty publicou, em 2013, seu surpreendente livro O Capital no Século XXI. Tornou-se, imediatamente, como afirmou The Guardian, “o rock star da economia”, com efusivos admiradores, tanto entre os adeptos da economia liberal quanto entre os da economia socialista. Nenhum militante cristão (ou cristã) deveria deixar de ler o livro (Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014). A grande novidade da obra (650 páginas!) consiste numa “extraordinária pesquisa histórica” (cf. Antonio Delfim Netto), descrevendo - com o uso de gráficos e tabelas muito consistentes - a evolução do capitalismo dos últimos 300 anos. Diversas equipes, altamente especializadas, pesquisaram, durante 15 anos, as fontes mundiais mais confiáveis para corroborar as teses de Piketty.

1. Sobre os celeiros abarrotados

Qual a tese básica que o autor defende? Piketty afirma que Karl Marx, ao profetizar que o capitalismo - pelo mecanismo insano da acumulação infinita do capital - criaria seu próprios coveiros, tinha razão e não tinha razão ao mesmo tempo. Marx errou porque a própria história (até agora) comprovou que o capitalismo não entrou em colapso, muito pelo contrário. Com gráficos incontestáveis, Piketty demonstra que, no tempo de Marx (século XIX), a renda do capital - comparada à renda nacional - era, de fato, muito alta, sofrendo, porém, queda forte no período entreguerras da primeira metade do século XX. Na renda nacional, o que não é renda do capital é renda do trabalho. Piketty sustenta que educação e profissionalização generalizadas aumentaram de forma permanente a produtividade, permitindo assim melhores salários a faixas mais amplas da população, evitando desta forma o colapso do capitalismo. A revolução operária, prevista por Marx, com raríssimas exceções, não ocorreu. De fato, nas décadas do pós-guerra, o vigor do capitalismo industrial na Europa, aliado a uma forte política fiscal de distribuição de renda, antes quase inexistente, permitiu à Europa criar um Estado Social que deu a muitos a impressão de uma superação natural do capitalismo. Os gráficos muito detalhados de Piketty mostram, no entanto, que se criou, na verdade, uma “classe média patrimonial”. Em 1910, os 10% mais ricos detinham a quase totalidade da riqueza nacional (até 90%). Não havia classe média, uma vez que os 40% do meio eram quase tão pobres quanto os 50% mais pobres. Em 2010, o décimo superior da Europa possuía 60% da riqueza total (o centésimo superior, sozinho, 25%!), o grupo do meio quase 35% e os 50% mais pobres algo pouco acima de 5%. Nos Estados Unidos a disparidade é maior, ficando os 50% mais pobres com miseráveis 2%. Marx viu apenas os salários estagnados e o capital crescendo fortemente, não tendo o privilégio desse olhar histórico mais amplo.

Mas, aonde Marx então acertou? Marx acertou em perceber que a lógica capitalista, de fato, tende a uma acumulação infinita quando deixada à sua própria sorte. Apenas forças externas (guerras p. ex.) podem brecá-lo ou impor-lhe controle, especialmente políticas fiscais. Novamente com ajuda de gráficos e tabelas, Piketty mostra que, após a estagflação (estagnação + inflação) econômica dos anos 1970, e a introdução de políticas neoliberais a partir da década de 1980 - diminuindo fortemente o controle fiscal e dando ampla liberdade ao capital financeiro, agora em escala global -, a renda do capital, sempre em proporção à renda nacional, voltou a crescer fortemente, com a franca tendência de, em breve, superar todas as marcas históricas. Se na época de Marx a renda do capital (na França, p.ex.) representava 43% da renda nacional, nos anos 1940 ela baixou para 15%, subindo novamente para perto de 30% em 2010. Piketty costuma expressar o valor de mercado do estoque de capital (em mãos de capitalistas privados) em três, quatro, seis, oito ou até dez anos de renda nacional. Tomando os países ricos como exemplo (EUA, Alemanha, Reino Unido, Canadá, Japão, França, Itália e Austrália), ele mostra que o capital privado destes países valia, em média, entre dois e 3,5 anos de renda nacional em 1970 e entre quatro e sete anos de renda nacional em 2010. Em perspectiva histórica, um enriquecimento estonteante num prazo muito pequeno.

Um observador menos atento poderia pensar: se os capitalistas (em geral) levam 30% da renda nacional, ainda sobram 70% para o mundo do trabalho. Nada mal! Na verdade, nada mais enganador do que isso. Trata-se sempre de um pequenino grupo que enriquece muito, em oposição a uma imensa maioria que apenas vê o navio passar. Piketty tem o grande mérito de mostrar, com dados convincentes, a grande e crescente disparidade entre os possuidores do capital, como também entre os possuidores dos salários. Em geral distingue entre os 50% das rendas inferiores, os 40% de renda média e os 10% de rendas altas. Mas ele insiste em dividir também os 10% mais ricos em os 9% de renda menor e o 1% de renda muito alta (o centésimo superior, ou até o milésimo). Uma das características do capitalismo financeiro (internacional) moderno é justamente a “loucura” da enorme disparidade entre as rendas mais altas, tanto do capital quanto do trabalho. Em 1987, os bilionários eram cinco em cada cem milhões de habitantes adultos; em 2013 eram 30. Estão sentados sobre pilhas e pilhas de dinheiro, investidas frequentemente em especulação financeira sem nenhuma relação com qualquer produção significativa. Nos EUA, um grande grupo, publicamente, fez um apelo ao presidente Obama para aumentar seus impostos, sinal evidente da anormalidade da situação. No mundo do trabalho, o centésimo ou milésimo superior, em geral executivos das grandes corporações ou “experts” de grandes fundos de investimento, chegam a ganhar facilmente 100 vezes mais do que a média salarial do país. Isto, sem relação alguma com um suposto (ou alegado) aumento de produtividade útil. O sistema “enlouqueceu”, diz Piketty. A lógica é uma só: quando os celeiros estão cheios é preciso aumentá-los.

2. Sobre os lírios do campo

Jesus conhecia bem este mundo. O capitalismo é tão antigo quanto o ser humano. O biólogo evolutivo Richard Dawkins, em O Gene Egoísta (1976), atribuiu a todo ser vivo genes egoístas e altruístas. A “Vida” precisa de ambos para florescer, mas facilmente os genes egoístas atropelam os altruístas. A tradição judaico-cristã começa com a advertência de Moisés: é preciso escolher entre a bênção e a maldição (Dt 11,26-28). Jesus complementa: nesta terra há cabritos e ovelhas. Apenas às ovelhas - os “benditos do Pai” - é oferecida a herança do Reino (Mt 25,31-46). Os lírios do campo estão aí, pequenos e insignificantes, mas, se Deus veste tão bem o que é insignificante, para que se preocupar tanto? Apenas “os gentios deste mundo” têm mania de destruir celeiros e construir maiores.

Piketty é um economista generoso, com um bocado de genes altruístas. Propõe um forte imposto progressivo sobre o capital e a riqueza, tendo em vista o fortalecimento de um Estado Social e uma “Democracia Meritocrática”, a qual desigualdade social é tolerada apenas quando considerada “justa” (isto é, quando “útil” à coletividade e ao sistema). Não interfere, contudo, na lógica do sistema: o capitalismo é bom porque permite ampliar os celeiros, havendo então mais trigo a distribuir.

Muitos membros da Igreja podem encontrar em Piketty uma proposta de justiça social mais ao encontro da tradicional Doutrina Social católica. O autor, no entanto, passa ao largo de muitas preocupações latino-americanas: como superar a “dependência” das economias periféricas dos comandos centrais?; como superar o fortíssimo controle político do “1%” sobre a massa popular impotente (os “99%” do movimento Occupy, ou dos Indignados espanhóis...ou brasileiros)?; um “outro mundo” é possível?; se é preciso apostar na democracia, em qual delas devemos investir?; onde ficam os excluídos numa “democracia meritocrática”?; e como fazer tudo isso com pleno emprego e respeito ambiental? Marx foi mais incisivo, colocando no centro a questão do poder. Piketty, na verdade, apenas propõe um capitalismo mais decente. Entregar, porém, o controle da sociedade ao capital é sempre colocar a raposa no galinheiro.

Nossa opinião é que Piketty abre perspectivas importantes que podem até reverter a irracionalidade do atual sistema neoliberal, mas ele não compreende a linguagem narrativo-simbólica do Evangelho. Não entende por que os lírios do campo se vestem tão bem. O mundo ocidental, seja central ou periférico, deixou à margem as religiões, a espiritualidade. Quem cria o mundo, todos os dias, é Deus, e Deus faz isto através do seu Espírito, presente na religiosidade humana (de todas as religiões). Jesus o intuiu muito bem: os frágeis lírios do campo continuarão florescendo apenas quando o mundo abrir espaço para o Reinado de Deus. O Capital no Século XXI nos remeteu à década de 1970, quando fizemos nossa pré-especialização em economia, escrevendo uma tese sobre “o PIB e a FIB”: o Produto Interno Bruto é meio; a Felicidade Interna Bruta é fim. Um fim que deve ser respeitado também no decorrer do processo para que as mais profundas utopias humanas (sempre religiosas), um dia, possam tornar-se realidade.

 

Nicolau João Bakker

Diadema, SP, Brasil