Sobre a democracia

Sobre a democracia

José SARAMAGO


Aprendemos das lições da vida que de pouco nos servirá uma democracia política, por mais equilibrada que pareça ser nas suas estruturas internas e no seu funcionamento, se não tiver sido constituída como raiz de uma efectiva e concreta democracia económica e de uma não menos efectiva e concreta democracia cultural. Dizê-lo nos dias de hoje há-de parecer um exausto lugar-comum de certas inquietações ideológicas do passado, mas seria fechar os olhos à realidade não reconhecer que aquela trindade democrática – a política, a económica, a cultural -, cada uma delas complementar das outras, representou, no tempo da sua prosperidade como ideia de futuro, uma das mais entusiasmantes bandeiras cívicas que alguma vez, na história recente, foram capazes de abalar consciências, de mobilizar vontades, de comover corações.

Hoje, desprezadas e atiradas para o caixote do lixo das fórmulas que o uso cansou e deformou, a ideia de democracia económica deu lugar a um mercado obscenamente triunfante e a ideia de democracia cultural foi substituída por uma massificação industrial das culturas. Não progredimos, retrocedemos. E cada vez se irá tornando mais absurdo falar de democracia se teimarmos no equívoco de a identificar unicamente com as suas expressões quantitativas e mecânicas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem atender ao seu conteúdo real e à utilização que efectivamente é feita do voto que os justificou e os colocou no lugar que ocupam.

Não se conclua do que acabo de dizer que estou contra a existência dos partidos: sou membro de um deles. Não se pense que aborreço parlamentos e deputados: querê-los-ia, a uns e a outros, em tudo melhores. E tão-pouco se creia que sou o providencial inventor de uma receita mágica que permitiria aos povos, doravante, viver sem ter de aturar governos: apenas me recuso a admitir que só seja possível governar e desejar ser governado conforme os modelos democráticos em uso, a meu ver incompletos e incoerentes, que pretendemos tornar universais, numa espécie de fuga para a frente, como se quiséssemos fugir dos nossos fantasmas em vez de os reconhecer como o que são e trabalhar para os vencer.

Chamei «incompletos e incoerentes» aos modelos democráticos em uso porque em realidade não vejo como designá-los doutra maneira. Uma democracia bem entendida, inteira, irradiante, como um sol que por igual a todos iluminasse, deveria, em nome da pura lógica, começar pelos nossos próprios países. Se esta premissa não for assumida e observada, e a experiência de todos os dias diz-nos que não o é, todos os raciocínios e práticas subsequentes, quer dizer, a fundamentação do regime e o funcionamento do sistema, ficarão viciados e pervertidos.

Vimos como já se tornou obsoleto invocar os objectivos de uma democracia económica e de uma democracia cultural, sem os quais o edifício do que designamos por democracia política fica reduzido a uma frágil casca, acaso brilhante e colorida, mas vazia de conteúdo realmente nutriente. Querem, porém, as circunstâncias da vida actual que até mesmo essa delgada e quebradiça casca das aparências democráticas, preservadas pelo impenitente conservadorismo do espírito humano, ao qual, mais de costume, bastam as formas exteriores, os símbolos e os rituais para continuar a crer na existência de uma materialidade carecida de coesão ou de uma transcendência que perdeu sentido e nome – querem as circunstâncias da vida actual, repito, que as cintilações e as cores que têm adornado, aos nossos olhos, as formas da democracia política, se estejam a tornar baças, sombrias, de maneira ainda imprecisa, mas não por isso menos angustiante. Direi, segundo o meu modo de entender, porquê.

Como sempre sucedeu, a questão central de qualquer tipo de organização social humana, da qual todas as outras decorrem e para a qual todas acabam por concorrer, é a questão do poder, e o problema teórico e prático com que invariavelmente nos enfrentamos é identificar quem o detém, averiguar como chegou a ele, verificar o uso que dele faz, os meios de que se serve e os fins a que aponta. Se a democracia fosse, de facto, o que, com autêntica ou fingida ingenuidade continuamos a dizer que é, o governo do povo, pelo povo e para o povo, qualquer debate sobre a questão do poder perderia sentido, uma vez que, residindo o poder no povo, era ao povo que competiria a administração dele, e, sendo o povo a administrar o poder, está claro que só o deveria fazer para o seu próprio bem e para a sua própria felicidade. Ora, só um espírito perverso, panglossiano até ao cinismo, ousaria proclamar hoje a felicidade de um mundo que, pelo contrário, ninguém deveria pretender que o aceitemos tal qual é, só pelo facto de ser, supostamente, o melhor dos mundos possíveis. É a própria e concreta situação do mundo denominado democrático que nos diz que se é certo serem os povos governados, certo é também que não o são por si mesmos nem para si mesmos…

Dir-me-eis: «Governam-nos os seus representantes eleitos democraticamente, aí se encontra o poder democrático». E eu responderei: «Não estamos num laboratório onde, tendo misturado substâncias quimicamente puras, podemos esperar que o produto resultante venha a ser também quimicamente puro».

Por definição, o poder democrático será sempre provisório e conjuntural, dependerá da estabilidade do voto, da flutuação das ideologias ou dos interesses de classe, e, como tal, pode ser visto como uma espécie de barómetro orgânico que vai registando as variações do querer político da sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com amplitude cada vez maior, abundam os casos de mudanças políticas aparentemente radicais que tiveram como efeito radicais mudanças de governo, mas a que não se seguiram as mudanças económicas, culturais e sociais que o resultado do sufrágio tinha parecido anunciar. Dizer hoje «governo socialista», ou «social-democrata», ou «conservador», ou «liberal», e chamar-lhe «poder», é nomear algo que não se encontra onde parece, mas em outro inalcançável lugar – o do poder económico, efectivo, determinante e actuante, cujos contornos podemos perceber em filigrana por detrás das tramas e das malhas institucionais, mas que se nos escapa quando tentamos chegar-lhe mais perto e contra-ataca se tivermos a veleidade de reduzir ou regular o seu domínio, subordinando-o aos interesses gerais.

Por outras e mais claras palavras, digo que os povos não elegeram os seus governos para que eles os «levassem» ao Mercado, e que é o Mercado que por todos os modos condiciona os governos para que lhe «levem» os povos. Se assim falo do Mercado é por ser ele, hoje, e mais do que nunca, o instrumento por excelência do autêntico, único e insofismável poder, o poder económico e financeiro multinacional, esse que não é democrático porque não o elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que finalmente não é democrático porque não visa a felicidade do povo.

Não faltarão sensibilidades delicadas para acharem escandaloso e provocador o que acabo de dizer, embora elas próprias tenham de concordar que não fiz mais que enunciar algumas verdades elementares e transparentes, dados correntes da experiência quotidiana de todos nós, simples observações do senso comum. Sobre essas e outras não menos claras obviedades, porém, têm imposto as estratégias políticas de todos os rostos e cores um prudente silêncio para que não ouse insinuar alguém que, conhecendo a verdade, andamos a praticar a mentira ou dela aceitamos ser cúmplices.

Haveria que perguntar (1) se existe alguma legitimidade na interposição de limites tácitos ou consensuais ao exercício da responsabilidade de todo o cidadão na sua relação com a sociedade em que vive; (2) se a determinação desses limites, que o uso, passando tempo bastante, sempre acaba por fixar, resultou exclusivamente de um acto de renúncia voluntária ou foi consequência de atitudes de negação ou indiferença, mais ou menos conscientes, a exercer direitos e a assumir deveres; (3) se, finalmente, é legítimo continuar a falar de exercício democrático sem a participação e a intervenção permanentes dos cidadãos na vida colectiva; sem a clarificação pública das fontes do poder; sem o cumprimento rigoroso do preceito fundamental de Direito segundo o qual todos os cidadãos são iguais perante a lei; sem o reconhecimento, não somente formal, mas verificável nos factos, de que os benefícios e melhorias sociais, sem exclusão de nenhum dos seus componentes, quer sejam de natureza estrutural, económica ou cultural, são, por extensão e sem condições redutoras, extensíveis a toda a comunidade. Etc., etc., etc. Porque a democracia, ou é total, ou ainda não é democracia.

Isto me leva a concluir que antes de pensarmos em exportar simulacros de democracia para o resto do mundo deveríamos encontrar a maneira de a produzir e distribuir melhor (uso a linguagem do Mercado) nos nossos países.

Estou certo de que o mundo precisa de muito mais que a ilusão democrática que temos andado a fabricar e a que se reduzem, na maior parte dos casos, as nossas democracias.

 

José SARAMAGO

Portugal