Política e mercado

Política e mercado

Wim Dierckxens


A economia neoliberal é regida por uma política econômica de conquista do mercado mundial. É a política da divisão do mercado mundial existente, em benefício dos mais fortes, ou seja, das empresas transnacionais e do capital financeiro ligado a elas. A política deste processo de globalização do mercado se expressa em termos da eliminação de todas as distorções que impeçam que reine a lei do mais forte no mercado. A política neoliberal concebe o mercado de bens e serviços como um âmbito de liberdade sem fronteiras nem obstáculos, porém não para as pessoas. A economia se apresenta como científica, realista e indiscutível. Porém, sob essas aparências, se escondem os interesses e decisões das elites e das transnacionais para controlar a distribuição da riqueza existente em favor delas.

A vida inteira está subordinada às leis do mercado. Toda atividade social é avaliada como funcional ou disfuncional para o chamado «mercado livre». No trabalho é preciso ser eficiente e competente. Valores como solidariedade ou companheirismo desaparecem. Através do consumismo, a própria vida se submete à economia do mercado. Os grandes centros comerciais constituem os principais espaços da vida social em uma economia de mercado. «Compro, logo sou»; «sou enquanto tenho o último modelo», «sou o que tenho», etc. A pessoa que não pode participar dessa lógica de mercado se sente excluída e não é nada para os outros. A cultura deste «mercado livre» se define pelo «salve-se quem puder», às custas não importa de quem. São os meios de comunicação de massa os encarregados de reproduzir esta cultura que atenta contra a vida.

As funções de políticas de desenvolvimento endógeno e de bem-estar social do Estado, que caracterizaram de alguma forma o período anterior ao neoliberalismo, são vistas agora como «distorções» pela política de «mercado livre». Privatiza-se o que puder dar lucro à empresa privada (normalmente transnacional), e aquelas funções do Estado que não geram benefício (previdência social ou educação pública) têm o orçamento reduzido ao máximo possível. A conseqüência é o desmantelamento do Estado de Bem-Estar, por mais frágil que tenha sido no continente. Os neoliberais sustentam que uma «mão invisível» irá ordenar os interesses particulares em benefício da coletividade. A própria distribuição cada vez mais desigual da riqueza, contudo, não é algo que obedece a leis naturais ou é o resultado de uma «mão invisível», mas o resultado de uma consciente política neoliberal. Definitivamente, a planificação econômica está em mãos de empresas transnacionais, e a força de trabalho e a natureza estão submetidas à ditadura das forças demolidoras do mercado, condenando-as à exclusão e ao desencanto.

Diante desta política do mercado total, os próprios direitos econômicos e sociais e até os direitos humanos são vistos também como «distorções». Os direitos do mercado são direitos do grande capital, como o verdadeiro sujeito do mercado, e são postos acima dos direitos humanos. Os direitos econômicos e sociais historicamente adquiridos pelos cidadãos como sujeitos sociais reais constituem outra distorção para o grande capital. As transnacionais não assumem compromisso algum com a cidadania: operam como «Estados privados», sem fronteiras nem cidadãos. A política neoliberal opta conscientemente por investimentos que conduzem à exclusão progressiva e à flexibilização do mercado de trabalho em benefício exclusivo da grande empresa. A concentração da renda em cada vez menos mãos e a perda da cidadania, isto é, perda dos direitos econômicos e sociais, não são um efeito não intencional, mas uma opção política genocida. O FMI e o Banco Mundial e os governantes corruptos são co-responsáveis por essas políticas.

A política neoliberal tem apostado em políticas de ajuste estrutural e tratados de livre comércio às custas do desenvolvimento endógeno das nações latino-americanas e às custas da cidadania. Para conseguir impor essas políticas, valeram-se de escândalos, corrupções, nepotismo e até da guerra. A batalha pela divisão do mundo transcende hoje em dia o plano político e adquire, em nível mundial, um caráter cada vez mais bélico. Para impor os interesses estrangeiros a nossos povos, houve com freqüência jogo político nos governos de revezamento entre dois partidos que se alternam no poder, porém sempre em proveito imediato deles mesmos e do império do mercado e, em todo caso, não a serviço da cidadania. Como resultado, temos um desencanto crescente entre a cidadania com os políticos e com a política em geral. Não é de estranhar que a cidadania tenha perdido a fé na democracia representativa e em sua corrupta política partidária.

Com o desencanto progressivo nasce a consciência de que o mercado não pode ser o valor supremo e o controlador indiscutível da vida humana. A própria vida exige que política se guie por valores que a reafirmem, e que a economia esteja submetida aos interesses da sociedade em geral e dos excluídos em particular. A luta social por uma alternativa requer, então, a possibilidade de se desconectar deste processo de globalização. A desconexão do processo de globalização atinge todos os níveis: econômico, político, social, cultural... inclusive o nível pessoal. A desconexão exige de nós ser mais conscientes de nosso poder político, inclusive em nível individual, como consumidores. A chave da mudança está, então, em nossa própria conversão mental, combinada com a prática social.

A política de desconexão se apresenta em nível nacional, regional e também mundial. A política de desconexão em nível nacional, ou regional (como a ALBA), se dá como resposta às políticas neoliberais de anexação através dos diferentes tratados de livre comércio. A desconexão rompe com a política de anexação, e se desenvolve portanto em um ambiente internacional hostil da parte das principais potências. Países como Venezuela, Bolívia ou Equador, não podem se desenvolver para dentro senão em conflito com seu ambiente externo e com a oligarquia nacional. Nesta fase de luta, a unidade do povo está ditada em primeiro lugar pela luta anti-imperialista. Os dois aspectos – a luta de classes e a luta pela libertação nacional – coexistem nesta fase.

A política de desconexão revela que a economia de mercado constitui um «horizonte superável». No processo de desconexão, a esquerda é anti-neoliberal, anti-hegemônica e anti-imperialista e, ao mesmo tempo, democrática de vanguarda. Nasce a política de construção do socialismo do século XXI. Na atualidade e, no imediato, contudo, as lutas são dirigidas em primeiro lugar contra o neoliberalismo. Isso exige um papel relativamente centralizador do Estado, papel que, por sua vez, está em contradição com o processo de radicalização da democracia participativa. A democracia participativa não pode ser decretada de cima para baixo. Com efeito, se se quiser instaurar a democracia participativa, é preciso que o povo se converta em sujeito do poder. Para isso, é necessário lutar por um novo tipo de democracia, construída desde baixo, para os de baixo, através dos governos locais e das comunidades de cidadãos.

Como conseguimos uma regulação cidadã e social, ou melhor ainda, a socialização, mediante a democracia cidadã que integra? O Estado democrático de trânsito amplo, para além do capitalismo selvagem, requer um Estado que facilite uma regulação cidadã e social, ou melhor ainda, a socialização mediante a democracia cidadã participativa integradora, e não através do mercado total, com sua democracia representativa que exclui. Sem a transformação das pessoas em atores protagonistas de sua própria história, não será possível colocar a economia em função da vida dos povos. Em última instância, é um processo de transformação cultural, porque as pessoas se transformam através de suas próprias práticas.

* Wim Dierckxsens é investigador do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI) e do Fórum Mundial de Alternativas (FMA).

 

Wim Dierckxens

San José, Costa Rica