Poder social do Sul para provocar mudança de racionalidade económica

Poder social do Sul para provocar mudança de racionalidade económica

Crise de legitimidade de uma civilização: Rumo a outra economia


Vim Dierckxsens


À medida que a economia mundial colide com os limites da dívida e dos recursos naturais, mais e mais países centrais respondem buscando salvar o que na realidade são seus elementos mais dispensáveis – os bancos insolventes e corruptos e os gastos militares exorbitantes – enquanto deixam a maioria da sua população sofrendo com a “austeridade”. A partir de 2011 o começo de uma nova era de rebeliões e revoluções se anuncia, tal como aconteceu na Europa a partir de 1848. O que acontece desta vez não é simplesmente uma rebelião em um país ou região, como a Primavera Árabe, o movimento dos indignados na Espanha, a rebelião estudantil no Chile ou o Ocupa Wall Street nos Estados Unidos, mas está por eclodir algo maior, em escala mundial. Com a depressão do século XXI em marcha, entramos numa prolongada e generalizada crise de legitimidade em nível planetário que conduzirá, mais cedo ou mais tarde, a convulsões sociais e políticas em meio ao colapso da infraestrutura de suporte da qual dependem milhares de milhões para sua sobrevivência. Podemos falar de um despertar político e tomada de consciência universais. Com isto, pode estar em jogo a “Civilização Ocidental”. A atual ameaça de guerra nuclear não é mais do que um sintoma deste declínio. Queremos ver aqui dois eixos que podem alterar a racionalidade econômica vigente a partir do Sul.

Uma mudança da racionalidade a partir da luta por soberania alimentar no Sul

Uma dessas lutas gira em torno da soberania sobre a terra e a soberania alimentar. A soberania sobre a terra coloca o “povo” de volta ao palco. A “soberania sobre a terra” supõe a “soberania alimentar”, isto é, o direito dos povos de produzir e consumir alimentos saudáveis e seguros em seu território ou próximo a ele. A soberania sobre a terra foi perdida com o maciço monopólio no Sul para produzir agrocombustíveis para o Norte, o que põe em perigo a segurança alimentar. Diante disto, cedo ou tarde eclodirá a luta pela retomada de posse. Soberania sobre a terra é um contradiscurso em reação à monopolização massiva de terras. O “governo sobre a terra” é uma iniciativa e visão que vem “de cima”. Os governos nacionais são participantes decisivos na monopolização global de terras. Como dissemos, a luta por soberania sobre a terra trará de novo o “povo” ao centro do palco.

Os dados apresentados pela Rede por uma América Latina Livre de Transgênicos, em seu Boletim nº 460 de 1º de fevereiro de 2012, revelam que nos países periféricos foram comprados, entregues em concessão ou arrendados, até 227 milhões de hectares desde 2001, a maioria no ano de 2008, ano de fome extrema. Setenta por cento das terras monopolizadas situam-se na África subsaariana. Ocorre também no Sudeste da Ásia e, na América Latina, especialmente em países como Peru, Equador, Colômbia e Paraguai, mais afetados pela monopolização.

Os monopolizadores de terra por excelência foram os investidores estrangeiros. O número de investidores estrangeiros na América Latina, sem dúvida, não é tão elevado quanto na África ou na antiga União Soviética. As circunstâncias da América Latina e do Caribe assemelham-se mais ao caso do Sudeste Asiático, dominados por investimentos intrarregionais. As corporações transnacionais na América Latina sempre fazem investimentos substanciais em terra e vêm de países como Estados Unidos, Canadá, Espanha, Portugal e Itália, entre outros. O Brasil intervém em investimentos transfronteiriços em terras e, ao mesmo tempo, recebe muito investimento estrangeiro. Os dez países em que mais ocorre substancial monopolização de terras são: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guatemala, Paraguai, Peru e Uruguai, ou seja, todos se encontram na América do Sul, com exceção da Guatemala.

A escala de expropriação por deslocamento na América Latina e Caribe é relativamente pequena até o momento, sobretudo quando comparada com o processo de expropriação na África e Sudeste Asiático, na China e na Índia, durante o “monopólio interno de terras” com movimentos populares pouco difundidos mas cada vez mais numerosos. Houve monopolização em grande escala na América Latina e no Caribe, mas não levaram a expropriação massiva da magnitude do que ocorreu em muitos lugares da África e em algumas partes da Ásia. Colômbia é exceção neste contexto. Na África, as comunidades nativas tendem a ser deslocadas ou realocadas, o que implica diversas formas de violência. Com isso, não só são interrompidos os meios de subsistência como é destruída a produção de alimentos de subsistência para a população inteira. Daí decorrem fomes extremas.

Nas zonas mais áridas da África se monopolizaram terras para agrocombustíveis. Uns 19 milhões de hectares na África são cultivados para produzir jatrofa, com grandes concessões obtidas por países como China, mas também no Brasil. Jatrofa é um combustível extraído principalmente de uma planta da família euphorbiaceae (“batata-do-inferno”), não apta para a agricultura, nativa da América Central, e que cresce com facilidade nas zonas áridas do planeta. De suas sementes se extrai o azeite do qual se produz um diesel limpo – “petróleo verde” usado em motores. Graças a ele, basicamente, reduziu-se a produção de alimentos em 50% no Chade e em 27% na Nigéria. Situações extremas de fome não tardam a se manifestar, o que afeta não somente os agricultores deslocados, mas aldeias inteiras. O Chifre da África é uma das regiões mais turbulentas do mundo ao qual se soma a região do Sahel. A África é uma bomba-relógio e esta bomba-relógio se manifestará logo que as situações extremas de fome se generalizem.

José Saramago afirmou que a África é um apocalipse diário Nada é mais cotidiano hoje na África que as guerras civis, os golpes de Estado, a fome e os milhares de refugiados migrando de uma fronteira a outra, fugindo dessas situações de conflito. No último 29 de março de 2012, o diretor de operações do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, alertou a comunidade internacional sobre uma “corrida contra o relógio” para evitar uma crise alimentar na região do Sahel. Os países que correm maior risco seriam Mali, Burkina Faso, Chad, Mauritânia, Níger, Camarões, Nigéria e Senegal.

A chama da Primavera Árabe inflama os islamitas africanos, afirma Laszlo Trankovits. A instabilidade política e a difícil situação humanitária na região africana do Sahel poderiam converter-se em terreno fértil para outras rebeliões, advertiu o Conselho de Segurança da ONU, depois do golpe no Mali. A carestia cria por si só um clima insurrecional que precede um golpe de Estado. A expansão da rebelião tuaregue até o Níger e a vasta região do Sahel (que compreende Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger, Nigéria, Chad, Sudão e Sudão do Sul) pode ser apenas uma questão de tempo. Dito de outro modo: o golpe de Estado no Mali produziria a faísca detonadora de um grande conflito em toda a região.

A mudança da racionalidade econômica e a luta pelos recursos naturais estratégicos

Ao lado do declínio da taxa de lucro e da estagnação econômica nos países centrais, vemos surgirem nos países emergentes elevadas e sustentáveis taxas de crescimento econômico. Mencionamos aqui a China, Rússia, Índia, Brasil e África do Sul, os chamados BRICS. Estes países, ainda que heterogêneos em muitos aspectos, mostram, a China à frente, taxas de crescimento econômico muito fortes e desde há vários anos. São países cuja capacidade de substituição da força de trabalho é superior e, consequentemente, com índices salariais mais baixos. Esta perspectiva deve-se, em grande parte, ao elevado número de habitantes. O baixo custo da mão de obra, sem dúvida, não é o único fator de crescimento. Deve-se levar em conta o lugar que ocupam os recursos naturais estratégicos nesses países relativamente vastos.

A racionalidade econômica do capital levou à exploração excessiva não só das energias não renováveis, como o petróleo, mas de metais e minerais. Hoje em dia a escassez relativa de certos metais e minerais está ao alcance da vista. O mesmo geralmente concentra-se no Sul, especialmente nos países emergentes. O Ocidente está cada vez mais dependente dos países do Sul não somente no setor energético (petróleo), mas em minerais e metais em geral, sobretudo os estratégicos. Por conseguinte, as condições objetivas para estabelecer novas relações de poder estão dadas.

Enquanto o fornecimento de recursos naturais era muito abundante e provinha de múltiplos países, os preços destes metais e minerais costumavam ser muito baixos. Os chamados “termos de intercâmbio” eram muito desfavoráveis para os países do Sul. A lógica do capital é acumular com crescente rapidez. Ao encurtar a vida média dos produtos, a circulação do capital aumenta. Vendendo-se em menos tempo o mesmo valor, realiza-se então o mesmo ganho em tempo mais curto. Ao ampliar a circulação do capital, dá-se um processo de desmaterialização relativa. Demanda-se menos matéria por produto já que se tornam mais descartáveis. Desta forma, se vende em um período de um ano um volume maior de valor. A economia cresce em termos de valor nos países centrais, enquanto nos países periféricos se extrai, em termos de valor de uso, recursos naturais em velocidade crescente, sofrendo, assim, uma desmaterialização absoluta. Se as crises do passado se caracterizavam pelo excesso de produção de valores, a atual se caracteriza pela baixa “subprodução” de valores de uso, ao esgotarem-se os estoques de recursos naturais.

Dos 15 países mais dotados de recursos em metais e minerais em geral, os BRICS ocupam lugar privilegiado. Em primeiro lugar está a África do Sul, seguida da Rússia, ficando o Brasil em quinto e a China em sexto lugar, sendo que a Índia se situa na décima-primeira posição. Só com esta informação, fica clara a posição estratégica dos BRICS em matéria de posse de metais e minerais (ver Jeremy Grantham, Fifteen countries sitting on a fortune of metals and minerals – www.bussinessinsider.com). Ocupa um lugar privilegiado a América Latina que pode ser mais explorado no futuro. Entre os 15 países com mais metais e minerais há quatro latinoamericanos: por ordem de importância temos Brasil, Chile, Peru e México. Uma coisa, sem dúvida, é ter reservas minerais em geral; outra coisa, entretanto, é ter os recursos que mostrem escassez relativa. Um estudo realizado pela British Geological Society, Os metais mais raros da terra, (www.ecoapuntes.com.ar, setembro de 2011) mostrou que, dos 52 metais da lista, 60% (ou seja, 31 metais) tem um índice de risco de 5 ou mais, onde 1 indica o risco de fornecimento mais baixo e 5 o risco de fornecimento mais elevado. A escassez pode ser dividida em três dimensões: física, econômica (elevação de preço) e geopolítica (barreiras políticas). A lista da BGS mostra que a China lidera a produção global de quase todos os elementos da lista, sendo responsável pela extração de metade deles.

Ante a escassez relativa de recursos naturais estratégicos, os países produtores estão começando a proteger seus interesses. A China define impostos para exportações, especialmente de metais e minerais com alto valor de inovação. O país impôs outros obstáculos ao comércio de alguns metais, como as cotas e mesmo a proibição de exportar. A China faz isso para proteger indústrias próprias (cf. Elaboração de Economia e Finanças, Geopolítica: É possivel seguir com o progresso, com a escassez de matérias-primas raras?, Buenos Aires, 23 de dezembro de 2011).

A seguir, queremos destacar a importância da escassez relativa de materiais usados em tecnologias verdes emergentes.

Um relatório da Comissão Europeia e PriceWaterhouseCoopers (PWC) identificou 14 materiais estratégicos e escassos usados em tecnologias verdes emergentes. Ao aumentar sua importância para a futura economia, eleva-se o risco de sua escassez.

Em ordem alfabética, trata-se de antimônio, produzido segundo a ordem de importância, na China, África do Sul, Bolívia e México; berílio, produzido nos Estados Unidos, Rússia e China; cobalto, com produção de 90% na República Democrática do Congo, além da Zâmbia; fluorita, produzida na China, México e Mongólia; germânio, subproduto do zinco, que se encontra sobretudo na China e na Rússia; índico, encontrado sobretudo na China, Coreia e Japão; lítio, com 85% das reservas na América Latina (Bolívia, Chile e Argentina); grafite, produzido na China, Coreia e Índia; magnésio, nos Estados Unidos, China e Canadá; nióbio, na Austrália, Brasil e Canadá; o grupo de platina, na África do Sul e Rússia; as chamadas «terras raras», neodímio, tântulo e tungstênio, obtidos quase exclusivamente na China.

Na lista dos 14 recursos mencionados, a China aparece em oito ocasiões. Não se estranhe, então, que a China produza cerca de 50% da oferta global de alguns metais estratégicos e por volta de 97% das terras raras. Não há dúvida de que é o país emergente por excelência. África do Sul, Rússia, Bolívia, México, Coreia do Sul, Estados Unidos e Canadá são mencionados cada um duas vezes. A maior integração econômica entre a Rússia (maior produtor de gás e petróleo) e China é estimulada pela ameaça do Ocidente sobre o Oriente Médio em geral e o Irã em particular.

Vemo-nos diante da ameaça concreta de que a Eurásia se transforme no bloco de poder energético do futuro e constitua neste sentido uma ameaça ao Ocidente. Daí a ameaça de ataque nuclear ao Irã.

Não só a grande maioria dos materiais estratégicos em geral e os minerais de terras raras em particular são extraídos na China; o país conseguiu impor cada vez mais que sejam processados lá. Se o Ocidente quer ter acesso a materiais tão escassos e estratégicos, que instale então suas fábricas na China, eis a regra. A China não só exige a instalação de fábricas para elaborar estes matérias no país, como requer transferência de tecnologia. Em setembro de 2010, o Governo chinês restringiu a exportação de neodímio para destiná-lo aos próprios projetos de energia eólica. Em duas ocasiões, a Organização Mundial de Comércio (OMC) registrou ações contra a China por interferir na saída de terras raras para o exterior. Relatórios oficiais do governo estadunidense e europeu alertam que o futuro das fontes de energias renováveis está ameaçado por essa dependência extrema (cf. Miguel Ángel Criado, Ocidente depende de alguns minerais que não possui, 6 de janeiro de 2012).

Outros materiais igualmente estratégicos e dos quais se espera aumento de demanda, tornando-os críticos, são telúrio, gálio, índico e lítio. O lítio é assim considerado segundo relatório norte-americano. Mesmo tendo tido outros usos no passado, sua função principal hoje é alimentar todo tipo de baterias, entre outras para o desenvolvimento da energia eólica e do carro elétrico (cf. Miguel Ángel Criado, ibid.). O lítio é considerado um recurso relativamente estratégico e escasso diante do avanço da energia eólica e do carro elétrico. Há o fato de que a Bolívia conta com mais de 50% das reservas mundiais. Bolívia, Chile e Argentina juntos contam com 85% das reservas mundiais deste mineral. Juntos poderiam regular os preços. A imprensa, em Buenos Aires e Santiago, já anunciou a possibilidade de criação de uma Organização de Países Produtores de Lítio (OPPL) composta por Argentina, Bolívia, Chile, Austrália e China. Mais importante que o controle de preços por meio da OPPL, seria subordinar a produção de baterias e carros elétricos aos países produtores de lítio. Mais estratégico ainda para seu próprio desenvolvimento alternativo seria a fabricação de ônibus, tratando-se de valores de uso coletivo. A entrega do recurso em troca de transferência de tecnologia é a meta. A Bolívia não está na mesma situação que a China para alcançar este objetivo. A união Sul-Sul dos países produtores de metais estratégicos e limitados, cedo ou tarde, sem dúvida permitirá inverter as relações do poder de negociação.

A partir do Sul se poderá influir na mudança da racionalidade econômica em nível mundial. A crescente escassez de recursos naturais estratégicos no Ocidente, não somente irá compelir a reciclar esses recursos escassos, mas levará inevitavelmente à extensão da vida média dos seus produtos finais e/ou implicará no aumento da utilização de bens de consumo mais comuns. Isso leva à diminuição da economia em termos de valor. Com o crescimento econômico negativo não há acumulação que seja sustentável. Anuncia-se uma nova era de desacumulação de valor. Elevando-se a vida média dos produtos e ao adquirir os valores de uso um caráter coletivo em vez de individual, a produtividade do trabalho diminui em termos de valor, mas em termos de valor de uso, em troca, aumenta mais, conforme mais duradouros e coletivos sejam tais produtos. Esta questão levanta a possibilidade e a necessidade de transição para uma economia pós-capitalista onde o valor de uso se sobreponha ao valor de troca.

Os países periféricos têm certa margem para continuar crescendo sob a racionalidade antiga, enquanto os países centrais se veem em situação cada vez mais limitada. Sem dúvida, os países do Sul se verão confrontados pelo poder cada vez maior das organizações ecológicas contrárias à exploração ilimitada dos recursos naturais, assim como as comunidades indígenas e rurais que estão lutando contra o monopólio de suas terras. As lutas sociais na Bolívia e no Equador são um claro testemunho disso. Quanto mais estratégicas sejam determinadas terras para a exploração de um metal escasso, tanto mais efetiva será a luta social contra o monopólio dessas terras, a fim de sufocar a racionalidade econômica mundial a partir do Sul.

O poder social do Sul para provocar mudança na racionalidade econômica, de modo a promover uma mudança civilizatória, é maior do que nunca.

 

Vim Dierckxsens

São José, Costa Rica