Pátria Grande, liberdade!

Pátria Grande, Liberdade!

Marcelo BARROS


Na cultura atualmente dominante, quando se fala em liberdade, em geral, se pensa na liberdade individual e principalmente no que o sistema capitalista nos habituou a ver como liberdades: a liberdade de ir para onde quiser, liberdade de palavra e ação, desde que respeitem os direitos da liberdade dos outros. E, é claro, principalmente, liberdade de comprar e consumir. Uma liberdade condicionada aos interesses do mercado, já que, nesse sistema, quando o rico quer vender, é ele que dita o preço. E quando quer comprar também diz quanto quer dar pelo produto. E o povo pobre, seja quando compra, seja quando vende, nunca é tão livre assim. Atualmente, mais de 60 anos depois da Declaração dos Direitos Humanos, muitas organizações e movimentos sociais se esforçam para que a ONU declare os direitos coletivos das comunidades indígenas, grupos afro-descendentes e outros que, como coletividade, têm culturas autóctones e necessitam de liberdade de vida e expressão.

Por isso, cada vez mais fica claro que temos sim de defender as liberdades individuais, mas a raiz dessa liberdade é a instauração de um sistema social e político justo e que sirva à verdadeira libertação das pessoas marginalizadas e excluídas pelo sistema dominante. Sem dúvida, desde o começo do século XXI, isso está ocorrendo na América Latina, especificamente em alguns países nos quais se vive um processo social e político novo e em função das liberdades sociais e culturais de nossos povos.

Um italiano idoso que buscava notícias verdadeiras sobre o que está acontecendo na América Latina afirmou: “Se a imprensa tradicional e ligada aos interesses norte-americanos fala tão mal do que está acontecendo em vários países latino-americanos, só pode ser sinal de que alguma coisa nova e boa está acontecendo”. De fato, Boaventura de Sousa Santos, cientista social português, afirma: “A América Latina tem sido o Continente, onde o socialismo do século XXI entrou na agenda política”.

Leonardo Boff afirma: “É um novo projeto de Pátria Grande, como, no início do século XIX, era o sonho de Simón Bolívar, o libertador. Hoje, este processo revolucionário, mesmo ainda incipiente e frágil, está tomando um caráter original e autóctone, inspirado nas culturas próprias dos antigos povos do Continente e mergulhado na comunhão amorosa com o universo que nos rodeia, do qual somos parte pensante e sentida”.

É importante clarear: esse processo não ocorre de forma igual em todo o Continente. Enquanto em muitos países, ainda não é institucional e nem majoritário na sociedade, em países como Bolívia, Equador e Venezuela se tornou um processo político oficial e conta com o apoio e participação da maioria do povo, principalmente do povo mais pobre e organizado em suas associações civis. Na Bolívia, se chama insurgência indígena. No Equador, é conhecido como revolução cidadã. Entretanto, o nome que define melhor o que ocorre de novo e de popular em todo o Continente é o de “revolução bolivariana”, assumido na Venezuela. O bolivarianismo se chama assim por se referir à luta política e à proposta libertadora de Simon Bolívar e seus companheiros, no início do século XIX. Há alguns outros países que, embora não tenham aderido claramente a esse novo processo social e político, têm feito passos nesse caminho. Isso se deve ao fato de terem governantes mais populares e sensíveis às aspirações dos mais empobrecidos, mas principalmente à capacidade de organização e articulação dos movimentos sociais e de base. Nessa segunda linha podemos colocar o Uruguai, El Salvador, a Nicarágua e o Paraguai nos anos do presidente Fernando Lugo. O Brasil parecia entrar nessa linha. De fato, a partir do governo Lula, rompeu com a política imperialista norte-americana e aderiu à ALBA e à integração latino-americana. Entretanto, a política econômica interna, embora tenha aumentado muito os programas sociais de assistência aos empobrecidos e tenha mesmo conseguido diminuir a pobreza extrema no país, continua privilegiando os grandes capitais, favorecendo os banqueiros e privatizando hospitais, portos e aeroportos. Uma política claramente neoliberal não está no caminho bolivariano.

O atual processo social e político dos países que aceitam fazer esse passo novo visa a libertação de todo tipo de colonialismo, propõe a radicalização da democracia com plena participação popular e ao mesmo tempo ao menos inicia uma transformação sócioeconômica que resgata a proposta de justiça e repartição social vinda do Socialismo, embora defenda métodos diferentes e novos, com relação aos regimes socialistas até aqui conhecidos no mundo. A referência a Bolívar é essencial como uma planta sorve sua seiva a partir de suas raízes. Ela se concretiza principalmente na proposta de integração continental latino-americana, evidentemente, hoje, realizada de forma e por caminhos diversos dos que eram possíveis no tempo de Bolívar.

Alguns analistas se recusam a identificar o atual bolivarianismo latino-americano com o socialismo. Dizem que, mesmo sendo diferente do Capitalismo, o Socialismo também privilegia a dimensão econômica como a fundamental, enquanto o processo bolivariano se baseia no bem-viver, noção comum a vários povos indígenas e que significa a busca pela vida plena que deve ser o objetivo das pessoas, comunidades e mesmo do Estado. No pequeno reino do Butão na Ásia, o Estado assumiu como critério para medir o progresso do país o “índice de felicidade interna bruta” (gross national happiness). Pode-se dizer que o processo bolivariano propõe o mesmo objetivo a partir das culturas indígenas e autóctones.

Hoje, se torna realidade o que, no século XIX, Bolívar e José Martí expressaram como desejo profundo e projeto futuro. Atualmente, a Confederação dos Estados da América Latina e Caribe (CELAC) e a União das Nações do Sul (UNASUL), com a ALBA e seus organismos econômicos, culturais e sociais, concretizam o ideal da “Pátria Grande”, “Nuestra América”. Somente agora, depois de 200 anos, o nosso Continente consegue cumprir as três etapas do processo de independência para alcançar a verdadeira liberdade social e política.

1. A libertação do colonialismo

Somente agora, a maioria de nossos países se libertou do colonialismo norte-americano e europeu. Ainda há alguns países que vivem essa dependência colonial, mas os ligados ao bolivarianismo já romperam com a corrente que impedia a liberdade. Comumente, os interesses estrangeiros nos países se justificam como ajuda econômica. Vários dos nossos países têm rompido com isso. Também tem rompido com a ideologia armamentista e guerreira que os Estados Unidos impuseram em nosso Continente. Até algumas décadas, com o pretexto de colaborar com a política anti-droga, os Estados Unidos tinham várias bases militares em nossos países. Equador, Paraguai e Bolívia romperam com isso. Rafael Correa, presidente do Equador, declarou: “Serei de acordo que os Estados Unidos possam ter bases militares em nosso território, se eles nos permitem ter bases militares equatorianas em território norte-americano”. O bolivarianismo propõe outro modo de conceber segurança social e defesa nacional. Nossos países se tornaram multi-étnicos e multi-culturais.

2. Radicalização da democracia social e política

Mesmo de forma ainda incipiente e desigual, os países bolivarianos aprofundam a democracia social e política como elemento essencial desse novo tipo de socialismo. Com todos os limites da democracia formal, a opção das pessoas engajadas no processo bolivariano foi ir muito além das estruturas da democracia ocidental, mas partindo delas e as respeitando. Todos os países que vivem esse caminho o fazem através de eleições gerais e transparentes. Diversos países experimentam uma democracia mais civil e popular. A base desse processo é a liberdade de expressão e participação das comunidades tradicionais, negros, indígenas e camponeses. Em vários países, a noção do Bem Viver, como ideal de uma vida em plenitude, guia as próprias responsabilidades e deveres do Estado.

Para possibilitar maior liberdade de expressão por partes das bases, o processo bolivariano privilegia a educação. A ONU já declarou a Venezuela livre do analfabetismo e por todo o país, círculos bolivarianos de estudo mantêm uma formação permanente para as pessoas do campo e da cidade. O Equador e a Bolívia têm dado prioridade às campanhas de educação de adultos e os resultados são surpreendentes. Essa campanha de educação pode se alicerçar em maior cuidado com a saúde popular, com a segurança alimentar e o direito a uma habitação digna. Diversos países têm programas especiais para a inclusão social da juventude.

3. Para a construção de um socialismo verdadeiro

Finalmente se pode dizer que a terceira etapa do processo bolivariano, apenas começou. Somente anos depois do processo instalado, os Estados bolivarianos puderam começar a sua luta contra o Capitalismo predador e caminhar na direção de um Socialismo mais justo e solidário. A UNESCO e outros organismos internacionais declararam que, de toda a América Latina, a Venezuela foi o país que mais conseguiu superar a desigualdade social e promover a igualdade entre seus cidadãos. Tanto na Venezuela, como no Equador e Bolívia, novas constituições garantem reforma agrária, maior justiça nas condições de trabalho e limites para o capital econômico opressor. O próprio Estado assume a tarefa de defender os mais fragilizados, lhes dando o direito de ser, eles mesmos, sujeitos do processo social.

Bolivarianismo e liberdade espiritual

Se a liberdade é sempre social, embora também a experimentemos individualmente, um caminho para um socialismo democrático e vivido a partir das culturas populares assume as tradições espirituais desses povos. O desafio teológico do Bolivarianismo nos faz retomar de outra forma e em outros termos o que na América Latina vivemos nos anos 90, especificamente, em setembro de 1992, com o primeiro encontro inter-continental da Assembléia do Povo de Deus (APD) e sua proposta de uma espiritualidade macro-ecumênica contra o neo-liberalismo. Os movimentos bolivarianos e as alternativas concretas que esse processo tem suscitado (UNASUL, ALBA, Banco do Sul, etc.) são, hoje, as práticas que incidem realmente contra o Capitalismo neoliberal colonialista que ainda tenta nos dominar. É claro que por trás desta resistência e destas iniciativas novas têm de haver uma mística. Esta mística do Bolivarianismo é hoje uma atualização concreta desta espiritualidade macroecumênica contra o liberalismo atual.

Embora algumas cúpulas eclesiásticas se pronunciem contra o bolivarianismo, muitas comunidades cristãs e movimentos de base aprofundam uma espiritualidade socialista, baseada na vocação cristã para a liberdade. Entre os bispos católicos, alguns profetas se declararam favoráveis. Em 1978, em uma Universidade ibero-americana, dom Sérgio Méndez Arceo, bispo de Cuernavaca, México, declarava: “O socialismo é mais relevante para a construção da humanidade do século XXI do que qualquer outra idéia”.

Afinal São Paulo escreveu: “Onde o Espírito de Deus estiver, aí haverá liberdade” (2Cor 3,17). Ainda há várias etapas a percorrer. Entretanto, a palavra de ordem é: “Sejamos realistas: conquistemos o impossível!”.

 

Marcelo BARROS

Recife, PE, Brasil