Outro USA é possível

Outro USA é possível

José María VIGIL


Caminhamos de fato rumo a um só mundo

O «nexo social», o que constitui um coletivo humano na sociedade e não mera acumulação desagregada de pessoas, está simultaneamente se ampliando e intensificando, de forma que, cada vez estamos em sistemas sociais mais amplos, mais fortes e mais ligados entre si. O mundo se torna menor porque a sociedade se torna cada vez mais abarcadora. Vamos inevitavelmente rumo a -e em boa medida porque já estamos em- um só mundo.

Este único mundo é de fato governado pelos países mais fortes, que são também os mais ricos, com os EUA encabeçando a lista. O mundo acaba por ser uma oligarquia plutocrática mundial, e seus governantes governam em função de seus próprios interesses econômicos, contra os interesses dos pobres.

Perguntamo-nos: este país, os EUA, com tanta responsabilidade na situação atual do mundo, poderia adotar uma postura diferente, favorável aos pobres, e ajudar a gerar a proposta da nova ordem mundial de que o mundo necessita? Um EUA diferente é possível?

Assumir juridicamente a mundialização

O problema atual do mundo não é a «globalização», senão, precisamente, que a globalização em curso é tendenciosa e parcial. A globalização neoliberal só glo-baliza os interesses dos grandes, e não se importa com os interesses dos pobres; estes ficam excluídos. A solu-ção do mundo é a globalização, mas «outra globaliza-ção», uma globalização «integral»: todos devemos estar englobados nos interesses de todos, em «um só mundo», governado e administrado como se fosse uma só família.

Bastaria aceitar «de fato», positiva e inteligentemente, o «fato» inevitável desse processo de mundializa-ção em curso. Antecipar-se ao fenômeno e assumi-lo. Declarar-nos juridicamente uma única sociedade mundial, uma única família humana, em uma única nave espacial, a Terra. E começar a sê-lo de fato. Isso é necessário,

- por ética: a fraternidade humana nos obriga, acima de sentimentos patrióticos diferentes;

- por egoísmo: melhor viver em uma «sociedade» de nações, que em uma selva onde uma nação com 6% da população monopoliza 50% das riquezas, explorando o resto do mundo e se defendendo desta maioria do mundo na base de exército e polícia mundial...

- até por sobrevivência: o caminho atual nos leva à ruína.

Ante este panorama, nos perguntamos: e se os EUA, líder da globalização neoliberal, assumisse «outra globa-lização», a globalização da solidariedade?

Após o 11 de setembro

A reação dos EUA após o 11 de setembro foi a mais primitiva, a vingança de uma guerra infinita (a lei do Talião foi um avanço na história, porque precisamente vinha controlar e pôr limite à vingança; só se poderia exigir «olho por olho»); imatura e sem saída (uma espiral de violência e terrorismo); totalmente ilegal (contra os Direitos dos Povos e as Instituições Internacionais); desestabilizadora da convivência internacional (com olímpico desprestígio da ONU), e contraditória, inclusive, com a proclamada tradição democrática estadunidense.

Isso está em continuidade com a história dos EUA:

- expansionismo territorial avassalador e de rapina;

- expansionismo comercial: quer monopolizar o mercado mundial, ser o provedor do mundo;

- expansionismo político: quer controlar os regimes dos demais países, ditar os seus planos, mudar regimes que não se submetam, impor o american way of life...

- expansionismo militar: incontáveis intervenções militares dos EUA desde sua própria origem;

- a doutrina Monroe: América para os americanos (do Norte!);

- o «Destino manifesto»: a nação eleita, fundamentalismo religioso, ainda que pareça civil...

Já faz muito tempo que Bolívar expressou o senti-mento latino-americano: «Os EUA parecem destinados pela Providência a espalhar males pela América Latina em nome da Liberdade». Hoje é assim também em todo o planeta donde se estende a convicção de que o perigo real mais ameaçador para a paz e o bem-estar mundial é precisamente os EUA.

Os EUA atual não é sustentável

Os EUA estão em uma relação insalubre, disfuncional, com o resto do mundo... Ganharam suas guerras de ocu-pação contra o Afeganistão e o Iraque, mas perderam a paz; conseguiram uma vitória militar, mas foram os grandes derrotados ante o mundo: ninguém duvida que é um «foragido» internacional, sem legitimidade. Todo o mundo ficou sabendo nos últimos meses que o país é governado por um «renascimento» das seitas fundamen-talistas, preso sob as garras das águias das multinacio-nais (a maior organização internacional de exploração econômica). Nunca houve no mundo um consenso tão unânime de que os EUA perderam a cabeça, a compostura e a razão, ficando só com a razão da força. Nunca em toda a sua história os EUA tiveram contra si uma opinião mundial tão ampla e tão profunda.

Os EUA estão entrando em um caminho insustentá-vel:

- quer se fechar em uma fortaleza, protegendo-se do mundo, com os escudos antimísseis intercontinentais, a guerra das estrelas, as cidades fantasma de autodefesa;

- quer ter um exército disposto a atuar em «qualquer rincão obscuro do planeta», ameaçando a todos que não se dobram aos seus planos imperialistas e violando a soberania dos demais Estados, atacando com «guerras preventivas» a qualquer um que possa lhe fazer frente, mesmo que não o faça;

- quer ser a polícia mundial, o controlador universal, com uma CIA com «licença para matar e para realizar ações encobertas»;

- «unilateralismo» é o novo nome do velho «imperialismo»...

Se os EUA fosse diferente...

Na perversa situação do mundo, o peso principal atual (iniciativa, responsabilidade, cumplicidade, partici-pação quantitativa) o leva aos EUA. Mas se no povo dos EUA surgisse uma nova consciência, uma «maioria moral» consciente do dano que seu país fez ao mundo — na verdade essa «maioria» já existe nos EUA, mas contudo enquanto minoria —, consciente também das suas grandes possibilidades para ajudar a comunidade mundial, e de sua grande responsabilidade de levar a cabo essa reforma mundial, os EUA poderiam ajudar a mudar o mundo radicalmente:

• Tratando de acabar finalmente com as grandes injustiças:

- Pondo um fim à situação atual de balança negativa para os pobres, pela qual países pobres são de fato exportadores de capital líquido para os países ricos, ou seja que «os pobres do mundo acabam financiando os ricos»;

- Abolindo a Dívida Externa: fixação de condições e taxas de juros acima das quais não se pode emprestar a um país;

- Declarando a anulação de muitas dívidas externas injustas já na sua concepção ou no seu desenvolvimen-to, e fixação de um período máximo de extinção para todas as demais.

• Estabelecendo um mecanismo de reparação histórica: - com respeito às práticas históricas clássicas danosas aos povos pobres: conquistas, invasões, guerras, escravidão...

- com respeito às práticas empobrecedoras dos países pobres na atualidade: fuga de cérebros, fuga de profissionais, fuga de capitais, roubo de conhecimentos...

- com respeito à secular exploração econômica dos povos pobres, devolvendo em forma de ajuda para o desenvolvimento e investimento generoso para a solução das grandes carências mundiais (fome, falta de água, educação, saúde).

• Dando passos para estabelecer um governo mundial: - Renúncia a toda preensão de hegemonia, unilateralismo, imperialismo, colonialismo, privilégios, isenção dos fóruns jurídicos mundiais, ausência nos acordos mundiais (humanitários, ecológicos, contra as armas...);

- Restabelecimento da ordem mundial em uma Nova Sociedade das Nações Unidas, verdadeiramente democrática, sem vetos privilegiados, com força de coerção e exclusividade no uso da força;

- Renovação das instituições mundiais segundo critérios democráticos e de cooperação, e não plutocráticos e de competitividade: BM, FMI, OMC...

- Criação dos Foros Mundiais de justiça: o Tribunal Penal Internacional e foros complementares.

Conclusão

É de importância capital para o mundo que os EUA mudem. Esta é uma das tarefas mais importantes da Humanidade agora. Por isso, que se conscientize a população que elege o «governo de fato»do mundo, deve ser um dos principais objetivos dos militantes de todo o planeta. Carlos Fuentes disse que a principal diferença entre o César atual e o da velha Roma imperial é que o atual tem que ir a eleições a cada 4 anos... E Comblin assegura que a grande resistência que mudará os EUA virá do interior do país.

A construção de «outro mundo possível» passa também pela construção de «outro EUA possível». A luta portanto não é só no Sul, senão que também no Norte. Necessitamos fazer alianças com o Sul que há no Norte (onde, como em todas as partes, «nem são todos os que estão, nem estão todos os que são»).

A batalha é de consciência, e não é, em última instância, entre os EUA e resto do mundo, senão que entre os que se dão conta de qual altermundialização necessitamos e os que se empenham em uma globaliza-ção egoísta, homicida, suicida.

 

José María VIGIL

Panamá