Outro paradigma científico é possível

Outro paradigma científico é possível

Sefio Antonio GÖRGEN


Entre os tantos acusados de obscurantismo científi-co, colocado no século XIX e classificado de dinossauro tecnológico, sinto-me no dever ético de entrar no debate científico que envolve a questão dos transgênicos, mais propriamente, sobre os fundamentos da ciência: seu método, sua finalidade e o controle ético sobre suas aplicações tecnológicas. Entre os que nos acusam – jornalistas e acadêmicos – há os desinformados, há os que servem a interesses inconfessáveis e há os que são vítimas de um reducionismo científico. Em alguns casos há uma recombinação dos três fatores.

O que mais chama a atenção são os acadêmicos bem formados mas escravos de um método científico reducio-nista, centrado na segmentação do objeto e na crença cega no determinismo genético, filhos, portanto, de uma escola científica incapaz de praticar a transdisciplinarie-dade e pouco afeita a reconhecer a complexa interação entre os sistemas vitais. No dizer de Lovins & Lovins em "O Conto das Duas Botânicas ”dentro da cartesiana tradi-ção de reduzir o todo complexo em partes simples, em-penha-se em alterar genes isolados e desconsidera a totalidade interativa dos ecossistemas” (Instituto Rocky Mountain, Colorado, EUA).

Este reducionismo se traduz na atribuição de grande efeito a um único gene. Embora genes são determinantes na expressão das características, a aparência de um ser vivo é resultante de interações genéticas complexas, além do efeito ambiental. É extremamente difícil que uma característica não seja afetada por alguma interação.

Alguns tem gosto especial em determinar o século científico em que outros estão. Pois registre-se que este paradigma científico é próprio dos séculos XIX e XX e começou a ser superado nas duas últimas décadas do século XX. Ao início do século XXI, a humanidade está frente a dois caminhos. Ou continua insistindo num paradigma científico cada vez mais fragmentário e espe-cializado, financiado por grandes capitais e a eles servil, consolidando a cooptação dos cientistas ou aprofunda a construção de um novo paradigma cien-tífico integral: biocêntrico, transdisciplinar, ecológico, sistêmico e holístico, rigoroso no método e na experimentação, sério na disciplina exigida pelo estatuto próprio da ciência, mas capaz de captar e relacionar o feixe de implicações inerentes a qualquer intervenção humana sobre a realidade, especialmente sobre os seres vivos.

Neste novo modo de fazer ciência, pelo qual lutamos, o controle social e ético guia as aplicações tecnológicas da ciência e tem precedência sobre os mecanismos do mercado. Neste novo paradigma defende-se em igual grau de intensidade a liberdade de pesquisa e o controle público e democrático sobre as aplicações dos resulta-dos do conhecimento científico.

A questão dos transgênicos, do ponto de vista científico, envolve cinco BIOs: 1-Biodiversidade; 2 – Biotecnologia; 3- Biosegurança; 4 – Biopirataria; 5 – Bioética. Do ponto de vista da soberania nacional deveríamos nos preocupar sobremaneira com a Biopira-taria de nosso patrimônio genético, o ouro verde do século 21.

Mas a verdade é que os fanáticos pró-transgênicos, com um discurso simplista de defesa da ciência, só tem se preocupado com uma área da ciência: a biotecnologia. E na biotecnologia, só a de laboratório, aproveitando-se e mercantilizando o melhoramento genético realizado pelas comunidades camponesas e pelos melhoristas tendo como base nossa fantástica biodiversidade vege-tal e animal. E na biotecnologia de laboratório, por razões certamente impublicáveis, restringem-se à defesa sectária de aplicações tecnológicas controladas por poucas grandes multinacionais. Demonstram cegueira científica ou comprometimentos de outra ordem, camuflados de defesa da ciência. Em nome do avanço da ciência, o que estão defendendo, na prática, é uma técnica de laboratório, limitada à manipulação genética de interesse comercial, controlada por monopólios econômicos. Estão promovendo produtos tecnológicos de alto risco, mercantilizados sem controle ético, sem testes de médio prazo, sem análises de biosegurança, sem avaliação de potenciais bioriscos, sem avaliação de impactos na biodiversidade e, o que é pior, colocando o interesse de lucro de grandes empresas acima da prote-ção da vida, ignorando por completo, portanto, a bioética.

A teia da vida, formada em bilhões de anos, não pode ser manipulada por técnicas de laboratório, por mais fantásticas que sejam, sem estudar e pesquisar o conjunto complexo de suas interações e impactos. É por isto que propugnamos. Por mais ciência e por um paradigma científico mais amplo e mais completo. Os transgênicos, da forma como são colocados hoje no mercado, são produto de um modelo científico em crise, criador de conseqüências ambientais funestas para a humanidade, servil aos donos do poder econômico e incapaz de dar respostas novas aos novos problemas que criou. A possibilidade científica de reprogramar a vida, rompendo, inclusive, a barreira do cruzamento sexual entre as espécies, exige por si mesma, a superação do modelo de ciência em que hoje está circunscrita. Mas cabe-me registrar que um número cada vez maior de cientistas posicionam-se contrários a qualquer forma de transferência genética entre seres vivos de espécies diferentes e que a transgenia em si é um erro. Defendem que devemos resgatar e pesquisar outros aspectos da biotecnologia, outras formas de saber científico, que reconheçam e captem a enorme complexidade e a diversidade de situações locais que envolvem as várias formas de interações vitais que nenhuma ciência de laboratório consegue alcançar.

Na questão dos transgênicos falta ciência e há pouca pesquisa. A ironia é que os que querem mais ciência são acusados de obscurantistas. E a empresa dona da paten-te da soja transgênica, que se nega a apresentar pesqui-sas elementares de médio prazo e em solo brasileiro sobre impactos ambientais e de segurança alimentar de uma planta engenheirada em laboratório com partes de material genético de um vírus, de duas agrobactérias e da petúnia, condicionada para resistir a altas doses de um veneno, comercializado pela mesma empresa, é apresentada como escopo de avanço científico.

Chegou a hora das ciências – esta palavra não tem o direito de ser utilizada no singular - com abordagem transdisciplinar, holística, ampla, integral, debruçarem-se e pesquisarem o conjunto das questões envolvidas no tema. E se quisermos mesmo modernidade, voltemos ao século XVIII e incorporemos os valores da democracia na assimilação social dos resultados da ciência. Ou teremos tecnologias totalitárias, impostas ao arrepio da vontade do conjunto dos cidadãos ou sem plena consciência do conjunto de suas implicações.

E a humanidade não conheceu até hoje nenhum totalitarismo benéfico, por mais casca de modernismo que pudesse apresentar.

 

Sefio Antonio GÖRGEN

Porto Alegre, Brasil