Outra economia e direitos humanos

Outra economia e direitos humanos

Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil


Conta-se que duas mulheres do Cerrado estavam conversando à sombra de um ipê, e uma perguntou à outra:

- Companheira, é a economia que nos faz ou somos nós que fazemos a economia? (Depois de um silêncio, respondeu):

- Olha, se a economia for inteirinha esse tal de mercado financeiro que tem vida própria, que ora acorda calmo ora nervoso, é mesmo a economia que faz a gente, porque se diz por aí que o mercado tudo comanda, se ele vai mal todo o resto vai mal. Mas se a economia for uma dimensão da vida entre muitas outras, se ela for espaço e momento para construir relações mediadas por direitos, que impedem a transformação de nossas vidas em «vidas secas», somos nós que construímos e mantemos a economia.

-Ah! Quer dizer que a economia pode levar em conta ou não os direitos humanos?

- Sim, é verdade!

- Só que nem todo mundo vê os direitos humanos do mesmo jeito. Uns dizem que eles são irrelevantes porque já está garantido que todos são iguais perante a lei e o que importa é o mercado e o lugar que cada um ocupa nele; outros afirmam que os direitos humanos atrapalham o desenvolvimento econômico. Estes até proclamam, direitos humanos para quem cumpre seus deveres e não perturba a ordem social estabelecida! Mas dão pouca ou nenhuma atenção quando são questionados sobre quem estabelece os deveres e qual a ordem a ser garantida. Comportam-se assim porque sabem que se escutar terão que sair da mídia-caverna, que dia a dia os protege.

- Então, para eles, a prática de trabalho escravo, o despejo violento de famílias de suas casas e de suas terras para atender os interesses da especulação imobiliária e do agro-hidronegócio, nada têm a ver com direitos humanos?

- Sim, essa é a verdade.

- E por que é assim? Você sabe me dizer.

- Porque as vítimas dessas ações são os pobres, a quem historicamente foi negada a condição humana. Se não há humanos nessa história, não tem sentido falar em direitos humanos. Nessa conjuntura, a economia que nos salta aos olhos e ao coração é aquela demarcada pelo terror, violência e pelo uso espetacular de aparelhos de vigilância e segurança. Não é possível garantir a coexistência de todos os seres, porque em cada esquina encontramos um inimigo. Muitos precisam morrer, para poucos viverem acumulando; outras tantas pessoas devem estar doentes e sem liberdade, para garantir a felicidade de uma minoria.

- Quer dizer que a economia desses senhores e senhoras não admite que inundar grandes áreas, para construir hidrelétricas, para promover o desenvolvimento econômico, sem se importar de verdade com a vida das comunidades indígenas, dos quilombolas e dos ribeirinhos, seja uma ofensa aos direitos humanos.

- É isso mesmo!

- Veja, não só não admitem, mas atacam e desqualificam quem assume a causa dos atingidos por barragem, pela seca, dos índios, dos negros, das mulheres, dos sem terra, sem teto, como causa dos direitos humanos. Economia para eles está relacionada ao lucro e à competição. A economia deles está baseada no crescimento e na acumulação, e como você sabe, para crescer e acumular é preciso ocupar espaço. Desse modo, onde não há espaço é preciso fazer surgi-lo. E você, moradora do Cerrado, conhece bem essa história, não é verdade?

- Você tem razão. A destruição da vida no Cerrado por meio de uma ocupação criminosa e violenta tem destruído a biodiversidade desse bioma. O cultivo da cana, do eucalipto e da soja tem tornado a terra e a vida dos trabalhadores e das trabalhadoras estéreis por meio de um uso excessivo de agrotóxicos e do trabalho escravo. Mas mesmo com toda dor, é bom que você saiba que os povos do Cerrado têm construído nos últimos tempos uma bela articulação por meio da educação popular, da agroecologia, de práticas populares em saúde e de economia solidária em associações e cooperativas, para garantir o respeito a seus saberes e a legitimidade de suas demandas por direitos humanos e políticas públicas.

- Que notícia boa você acaba de me dar, vamos andar um pouco pelo Cerrado para continuar nos inspirando na resistência deste bioma.

- Mas você me falou que a economia também pode estar profundamente vinculada a um outro modo de ver os direitos humanos.

- É, para nossa esperança existem mesmo outros modos de ver e pensar os direitos humanos e a economia. E podemos fazê-lo na companhia de homens e mulheres que, com suas vidas, têm sido um grito em defesa de «todos os direitos para todos». São assim porque acreditam que os direitos humanos podem gerar outra economia, pois os concebe como interdependência de direitos econômicos, sociais, culturais, ambientais e sexuais, construídos na história; como compromisso ético, como gratuidade, como ato de responsabilizar-se pela vida do Outro, sobretudo os violentados e jogados às margens do mundo. E mais, fazem da promoção e defesa dos direitos humanos ato de formação de sujeitos de direitos, homens e mulheres que aparecem individual e coletivamente na história com o direito à palavra e à ação, influenciando nas tomadas de decisão de suas comunidades e da República.

- Fale-me um pouco mais, essa história está me provocando. Mas antes vamos saborear frutos do Cerrado.

- Então, para conceber os direitos humanos como fonte de outra economia implica reconhecer e assumir que existem milhões de pessoas sem documentos, sem casa, sem saúde, sem lazer, sem trabalho ou submetidas ao trabalho escravo, sem educação, sem comida e sem água. E outras tantas que não podem ser o que são ou que desejam ser porque a violência estampada nas diferentes formas de preconceitos pode levá-las à morte. E essa realidade deve encharcar a economia gerada pelos direitos humanos, para que ela seja espaço-tempo de todos e todas, para a vida renascer e se fazer nova, sempre!

- É realmente uma tarefa desafiadora.

- Por isso, não é tarefa para se fazer sozinha. Direitos humanos e outra economia exigem interdependência e corresponsabilidade na defesa da vida, particularmente das pessoas que estão fora de qualquer horizonte das políticas públicas.

- Se não é trabalho para um, mas para muitos, talvez o caminho seja a educação.

- Concordo! E penso que deve ser uma educação que abra a possibilidade para a sociedade encontrar coletivamente seu próprio caminho, construir sua autonomia, e ser uma comunidade de presente e futuro.

- Mas isto é impossível no esquema tirânico neoliberal que nos impõe viver desperdiçando todas as nossas potencialidades em trabalhos infrutíferos, numa vida sem esperança.

- Pensar a economia à luz dos direitos é também promover uma educação fora dos horizontes neoliberais. Uma educação que faça de nós pessoas responsáveis por todas as formas de vida na luta contra a subalternidade, a exclusão e a morte. Penso em um trabalho educativo em rede para reinventar o mundo, nos educarmos em comunhão, como bem nos ensinou Paulo Freire, e resgatar nossa comunhão com a terra e com todos os seres vivos que nela habitam. Uma das formas de se realizar a educação em rede é por meio dos círculos de cultura, para ampliar espaços para a vida acontecer em toda a sua diversidade.

- Parece-me que a partir dessa perspectiva educacional é possível pensar a economia como um projeto comunitário, cujos sujeitos não permanecem silenciosos ante a violação dos direitos humanos e os desejos de libertação.

- Também penso assim. E digo que a articulação entre economia, direitos humanos e educação poderá nos fortalecer na luta contra todos os ferrolhos e labirintos do deus capital, possibilitando que os pobres, as mulheres, as crianças, os jovens, os negros, os afro-indígenas, os migrantes, a população em situação de rua vivam seu kairós, um tempo favorável, para libertarem e serem libertados, tempo feito de memória, identidade e resistência.

- Mas que relação há entre economia, direitos humanos, memória e identidade?

- Fazer memória é quebrar a cultura do silêncio, construir identidade é romper com os diferentes colonialismos. É ocupar, resistir e tecer vidas para a vida e não para a morte. Por justiça e direito queremos o nosso lugar na casa comum e também definir como ela deve ser gestada. Isso é economia, isso é direitos humanos.

- Que beleza, companheira!

- Olha, a economia nascida dos direitos humanos é uma economia fundada na pluralidade, responsabilidade e na fraternidade/solidariedade. Uma economia que não abre mão da justiça e do consumo consciente. Uma economia da partilha entre todos/todas e capaz de gerar um envolvimento sustentável com a Pachamama.

- Companheira, a conversa está boa, estou sentindo-me alimentada, mas o sol já está se pondo e ainda há muito trabalho a ser feito. Que tal constituirmos um ciclo de cultura para viver e pensar economia e direitos humanos?

- Escute! Para construir uma economia fundada nos direitos humanos, devemos começar por nos abrir às dores, aos sofrimentos, às alegrias e as esperanças, daquelas e daqueles que sofrem com as injustiças, com a violência do poder oligárquico político, econômico e religioso.

- Então, pé na estrada!

-Ah! Uma última coisa. Os senhores da economia capitalista globalizada acreditam que suas vestes são as mais belas. E todas e todos que protagonizam a economia que nasce dos direitos humanos são pessoas que, ousadamente, devem gritar como o menino e o povo da fábula de Andersen: «os senhores estão nus, estão nus»!!!