Outra África é possível

Outra África é possível

Robert McGOVERN


No início do milênio, a África parece nos mostrar o pior: fome, destruição ecológica no campo, miséria nas cidades, Aids e outras epidemias, avareza e corrupção das elites, tirania, insegurança... O pior.

O que aconteceria, se, ao contrário, a África nos desse o melhor de suas oportunidades? O que aconteceria se ela nos mostrasse o rosto de uma de suas aldeias quando goza a paz? Ali toda pessoa é cumprimentada e reconhecida em sua dignidade. Os conflitos que existem são resolvidos e a harmonia é restaurada mediante o diálogo público, o consenso e a reconciliação. A juventude transborda de energia e os anciãos são respeitados como fontes de sabedoria e de tradição. A fé religiosa é central na vida, mas suas diferentes tradições convivem no respeito mútuo.

Aquilo que há de mais urgente na África é uma cultura de paz. Já existe essa cultura. No âmbito da família estendida e do pequeno povoado, se busca resolver publicamente os conflitos por meio de contos, provérbios e parábolas. Ganha-se pela expressão pública da verdade, por um consenso que leva a todos em consideração e não humilha ninguém. Em setembro de 2002, ocorreu na África do Sul o apogeu do encontro inter-religioso pela paz. Os delegados manifestaram a opção de empregar os meios africanos tradicionais para resolver os conflitos, relaxar as tensões entre os partidos e viver uma coexistência pacífica e harmoniosa. O método atual, modelo importado, não está funcionando. Por que não põem em prática a cultura africana?

A idéia é boa, inclusive imprescindível. Porém, seria uma ilusão se não se confrontasse o contexto desses conflitos. A guerra e a desordem são o cume da triste ladainha de problemas da África moderna: a pobreza crescente, a urbanização, o comércio de armas, os refugiados e desterrados, os problemas demográficos, a condição da mulher, a Aids, a qualidade das escolas, o saque de recursos naturais, o meio ambiente, as divisões étnicas, a violação dos direitos humanos, a tirania, a anarquia.

Alguns destes problemas diminuiriam se o mundo aplicasse, sem tardar, algumas medidas. Por exemplo, o tráfico de armas: no final do século XIX, as potências européias, ocupadas em consolidar o seu domínio, proibiram a venda de armas modernas aos “indígenas africanos”. Agora, ao contrário, o Ocidente impulsiona um tráfico de armas que martiriza o Continente. Por acordo africano e internacional, o tráfico deve ser eliminado. Os que vendem armas teriam que vender medicamentos e livros.

Já basta de exploração dos recursos da África pobre por países que já são muito ricos. Que o Ocidente compreenda que os benefícios do petróleo, os diamantes e outros recursos devem ficar na África. Não é possível. Um consenso internacional pode combater a venda de marfim. Uma comissão internacional e interafricana poderia monitorar os contratos feitos a respeito, utilizando a pressão dos meios de comunicação.

A dívida internacional de muitos países pode ser facilmente cancelada. A África tem sido muito mal servida pelos seus líderes. É a tradição dos big men. Colaboraram com os escravagistas portugueses, suahili, ingleses e estadunidenses. Deram seu apoio ao saque do rio Congo pelo rei Leopoldo. Possibilitaram o governo indireto das colônias européias e se aproveitaram das divisões tribais que isto implicou. Lutaram pelo poder depois da independência, para logo se enriquecerem, canalizando os recursos da África ao estrangeiro e o dinheiro público às suas contas pessoais na Europa.

Entretanto, a África possui uma riqueza excepcional de talento político. Quem não se encantou com a eloqüência de seu discurso ou com a sabedoria de seus consensos? A África alternativa não surgirá sem que uma nova geração se coloque de pé e resista às seduções do poder. Na luta pela independência e por derrotar o apartheid ocorreram enormes sacrifícios desinteressados. Agora, o continente necessita novamente desse tipo de herói. São os jovens africanos quem devem decidir.

Essa decisão supõe uma educação renovada. Tarefa possível à causa do grande anseio de educação que tem a juventude. Tarefa delicada porque fracassaria sem uma boa infusão de novos valores e métodos. O estudante típico, vem em busca de formação literária, técnica ou científica, como um encanto mágico para possibilitar seu êxito econômico pessoal. Não lhe importa se essa formação escolar tem relação ou não com as necessidades ao seu entorno. Muitos sonham em estudar nos países ricos ou em instalar-se lá. Quem os culpará? Todavia, os tempos requerem mais valor, mais compromisso. Para responder, pede-se uma educação de valores e respeito à realidade local.

O Padre Odilo Coujil nos informa, de Moçambique, sobre um programa que pretende responder a este problema. “Nós havíamos dado conta de que a ideologia destruiu a noção tradicional e cristã de pessoa, sua dignidade. Ninguém falava de valores. Como sabíamos que estes se transmitem através das tradições, começamos o que chamávamos “retiros de iniciação”, uns encontros de uma semana com aqueles que socorriam muitos meninos e meninas para realizar sua iniciação nas tradições, no cristianismo e na modernidade... Foi uma experiência enriquecedora que ainda se mantém em nossos dias e dá lugar a notáveis testemunhos de vida cristã no mundo de hoje”. Vislumbramos aí o tipo de iniciativa educativa que pode se desenvolver, reabastecendo-se na índole da educação africana e indo ao encontro da fé e da modernidade. Eis aí uma visão alternativa.

Esta educação a partir da realidade africana é necessária também para resgatar o meio ambiente africano. Muitos perguntaram: por que pedir isso aos pobres que batalham pela sua própria sobrevivência? Vão preocupar-se com o desaparecimento de belas paisagens e animais selvagens? Entrementes, porque vivem nas áreas mais desprotegidas, são os pobres quem mais sofre com a degradação das fontes de água, com a perda do solo cultivável e com a contaminação do ar. Na África do Sul, por exemplo, 90% da terra é vulnerável à degradação e esse processo irreversível já começou na quarta parte dos estados do país.

Na África, o rádio, os jornais e a televisão nem sempre merecem credibilidade. Em muitos casos, são instrumentos dos valores da globalização e dos países do Norte. Outras vezes, são porta-vozes de regimes autoritários ou corruptos, sem integridade moral. A defesa e a promoção dos valores da vida necessitam meios constituídos a favor das pessoas, tais como jornais, revistas, sítios e emissoras, arte e música, como vozes autenticamente africanas comprometidas com a verdade. A África já conta com muitos jornalistas profissionais e muito corajosos, que começaram esta tarefa. A colaboração dos governos de boa vontade e das ONGs pode criar uma nova ética de comunicação a serviço do bem comum. Com efeito, o problema dos meios a serviço da mentira ou do consumismo é muito grave em todo o mundo. A África pode mostrar ao mundo uma visão moral dos meios de comunicação em massa, porque seus meios são mais novos, flexíveis e jovens.

As instituições religiosa são às vezes as únicas a funcionar e a ter credibilidade em áreas tomadas pela anarquia. Isto traz uma responsabilidade muito grande. Muitos trataram de explorar “divisões religiosas”para fins políticos. O processo já se iniciou no Sudão e na Nigéria. O verdadeiro sentido religioso africano não vai por aí. Para muitos muçulmanos e cristãos da África, sua religião é uma opção pessoal desta geração ou da anterior. Um católico pode ter um irmão muçulmano e uma irmã protestante. Os que não fizeram a mesma escolha, não são desqualificados. A África já contém exemplos contundentes de uma convivência de confiança entre muçulmanos e cristãos, e está avançando muito na colaboração cordial entre protestantes e católicos nos lugares onde antes havia tensões. Sonhamos que a África dê ao mundo uma grande surpresa. Seus dirigentes religiosos ficarão de pé em nome de sua fé comum no Deus único e em nome de sua identidade africana. Eles dirão: “Somos africanos. Somos especialistas no respeito à pessoa e à reconciliação. Não queremos importar do Oriente Médio e do Ocidente os problemas que não nos correspondem. Nossa espiritualidade está a serviço da Vida e da Unidade, não da morte e da dominação. Não é nosso estilo humilhar aqueles que não compartilham de nossa fé. Eles continuam sendo seres humanos e nossos irmãos africanos”.

Se a África tem direito de sonhar, e o podemos fazer também em seu nome:

Vejo o dia em que a África voltará à casa da paz pela cultura da paz, da justiça e da reconciliação. Então haverá uma celebração. A música da África soará com harmonias compostas em suas aldeias por seus bailarinos tradicionais e seus coros religiosos. A multidão, banhada em uma alegria triunfante, se moverá uníssona ao compasso de seus tambores. Em seus idiomas ancestrais e recém-emprestados e transformados, seus poetas celebrarão o gozo de viver e o dom da paz, a glória da vida e a bondade do Criador. De sua dispersão americana, caribenha e européia, virão seus artistas negros, seus jogadores de futebol, reconciliados com seu continente ancestral, orgulhosos de sua alegria e criatividade, solidários com suas lutas e celebrando seus triunfos. As imagens televisivas e os sítios da internet já não anunciarão a África como terra de fome, de terror e de desalento, senão como berço e esperança da Humanidade, terra de canto e celebração, de convivência e criatividade, de fé e de reconciliação.

Mungu ibariki Afrika. Que Deus abençoe a África!

Em ti todas as nações se bendirão.

 

Robert McGOVERN

México