Os direitos humanos e o mercado

Os Direitos Humanos e o Mercado

Patrus Ananias de Souza


A construção histórica dos Direitos Humanos, sempre em processo de crescimento e afirmação, não obstante os retrocessos lamentáveis, expressa a lenta e sofrida, mas também gratificante e esperançosa caminhada da humanidade na busca de realização dos seus melhores sentimentos, desafios e aspirações.

Aprendemos com as lições da vida e da história que os Direitos Humanos não caem do céu nem brotam da terra. São conquistados pelos grupos, classes sociais e povos a quem interessam através de movimentos, mobilizações, lutas, muitas vezes com elevados sacrifícios de vidas humanas. Surgem ainda e se impõem ao longo do tempo através da expansão das consciências e da emergência de novos valores e paradigmas de convivência humana.

Muitas tradições religiosas, filosóficas e culturais, além de muitos esforços pessoais e comunitários, se somaram para a construção teórica e prática desses direitos. A tradição cristã aportou uma extraordinária contribuição a esse processo a partir do legado de Jesus – sua vida e seus ensinamentos plenamente integrados e coerentes, centrados na dignidade da pessoa humana e na atenção especial e comprometida com os pobres.

As idéias liberais e contratualistas, emergentes a partir do século XVI e vinculadas à ascensão da burguesia, trouxeram, especialmente no século XVIII com a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, os direitos individuais e as primeiras sementes dos direitos políticos apontando na perspectiva da democracia. Eram inicialmente direitos restritos às classes dominantes que foram se universalizando com as lutas dos trabalhadores e seus aliados. As lutas sociais e as novas idéias do século XIX, como o marxismo e o cristianismo social, levaram no século XX aos direitos sociais, econômicos e culturais, à expansão dos direitos políticos e ao Estado do Bem-Estar Social.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948, busca uma síntese entre os direitos individuais, políticos e sociais. Os trinta artigos da histórica Declaração não obrigam os Estados, uma vez que lhes falta o poder coercitivo próprio das nações soberanas. O desafio moral, todavia, teve boas conseqüências. Muitos países acolheram as diretrizes da Carta da ONU em suas constituições e leis, tornando-as, pelo menos em tese, obrigatórias. Os Direitos Humanos passam a constituir no ordenamento jurídico dos países os direitos fundamentais que se articulam com os deveres correspondentes.

Nas palavras do Professor Fábio Konder Comparato: “A doutrina jurídica contemporânea (...) distingue os Direitos Humanos dos direitos fundamentais, na medida em que estes últimos são justamente os direitos humanos consagrados pelo Estado como regras constitucionais escritas.” Os direitos fundamentais podem, portanto, ser exigidos pela via administrativa e/ou judicial.

Documentos posteriores, como a Declaração Universal dos Direitos dos Povos, também conhecida como Carta de Argel (1976), deram uma dimensão mais coletiva aos Direitos Humanos, contextualizando-os no quadro das relações internacionais onde se colocam questões como as conseqüências do colonialismo que se manifestam nos nossos dias, entre outras facetas cruéis, com o drama dos migrantes; o imperialismo, as disparidades nas relações comerciais; a corrida armamentista e as guerras.

Nesta linha, a tradição cristã, e particularmente a Igreja Católica, ajudou a consolidar essa nova abordagem que vincula os Direitos Humanos à soberania das nações, ao desenvolvimento e à paz. Merecem destaque nesse novo enfoque paradigmático as encíclicas Paz na Terra de João XXIII (1963), Sobre o Desenvolvimento dos Povos de Paulo VI (1967), Solicitude Social de João Paulo II (1987), Sobre o Desenvolvimento Humano Integral na Caridade e na Verdade de Bento XVI (2009) e, mais recentemente, a Exortação Apostólica – A Alegria do Evangelho do Papa Francisco (2013) que faz duríssimas críticas ao império do mercado e do dinheiro.

A afirmação do direito das pessoas e das comunidades locais e nacionais encontrou uma poderosa resistência, tanto mais perversa quanto mais sutil e ideológica, nas últimas décadas do século passado. Importantes conquistas históricas e civilizatórias foram aplastadas pela onda neoliberal, nova feição de um capitalismo selvagem e triunfante fundado na defesa intransigente do Estado mínimo, da total liberdade dos mercados e do capital financeiro especulativo, do darwinismo social onde prevalece a lei do mais forte e do mais esperto.

O Papa Francisco na sua esplêndida Exortação mencionada confronta com profético vigor a “nova idolatria do dinheiro”. Após denunciar a cultura que descarta as pessoas transformando-as em bens de consumo, que torna os excluídos, mais do que explorados, em resíduos e sobras, o Papa denuncia a ordem dominante no mundo: “Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da ‘recaída favorável’ que pressupõe que todo o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar... Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem objetivo verdadeiramente humano.”

As características ditatoriais do mercado financeiro, tão bem captadas pelo Papa Francisco, se manifestam pela via autoritária do pensamento único que tende sempre a desqualificar os argumentos que o questionem e pela intensa propaganda, explícita ou subliminar, que invade a vida das pessoas, das famílias e das comunidades, dificultando-lhes, ou mesmo impedindo-lhes o discernimento em face dos desafios da realidade.

Os meios de comunicação social, em grande medida financiados pelos agentes do mercado, dão-lhe características humanas, enquanto massifica e despersonaliza as pessoas: o mercado está nervoso; o mercado está mais calmo; o mercado demanda, determina, impõe.

O mercado financeiro vai além das oscilações e chantagens das bolsas de valores; ele contamina toda a sociedade através da publicidade intensiva e sem limites éticos, verdadeiras lavagens cerebrais que criam falsas necessidades, exacerba o consumismo das classes mais ricas, aumenta as desigualdades sociais e agrava cada vez mais os impactos sobre o meio ambiente.

Além dos graves problemas sociais não resolvidos e muitas vezes agravados pela ditadura do mercado, acresce em nosso tempo os gravíssimos problemas ambientais. A Carta da Terra, publicada em 2000, apresenta o desafio e aponta o caminho: “Os padrões dominantes da produção e consumo estão causando devastação ambiental, redução dos recursos e uma massiva extinção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas... A escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida. São necessárias mudanças fundamentais dos nossos valores, instituições e modos de vida... Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados, e juntos podemos forjar soluções includentes.”

No campo dos direitos sociais, além dos problemas históricos situados nos textos mencionados, emergem agora novos desafios relacionados com a violência nas cidades que aflige mais direta e cotidianamente os pobres; o uso abusivo e o tráfico de drogas; o tráfico de pessoas, tema da Campanha da Fraternidade no Brasil, que compreende o tráfico vinculado à exploração sexual, inclusive de crianças e adolescentes, traficadas também para fins de adoção ilegal e exploração no trabalho, tráfico de órgãos humanos; as migrações e a crescente intolerância dos países ditos desenvolvidos; a agressão às terras e culturas de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. Tantos desafios! Tantos caminhos e possibilidades. Tempo do deserto e tempo das profecias!

É hora de reafirmarmos o nosso radical compromisso com a vida e com as gerações futuras. É hora de reafirmarmos a promessa de Jesus: “Vim para que tenham vida e a tenham em plenitude.”

 

Patrus Ananias de Souza

Belo Horizonte, MG, Brasil