Nossa história universal do Fuladu

Nossa história universal do Fuladu
Democracia e diversidade
 

Texto Coletivo


«O encontro com o Outro, com seres humanos diferentes, constituiu sempre, a experiência fundamental de nossa espécie.»1

Nos tempos em que a França se propunha proteger suas fronteiras, capitulando diante de Hitler, os professores chegaram ao Fuladu (país dos fulas, no atual Senegal), uma das regiões mais ignoradas pela trama colonizadora do período entre-guerras. A campanha de alfabetização fracassou totalmente por falta de alunos: as famílias escondiam as crianças dos forasteiros. Tinham medo. Ainda se recordavam das últimas capturas humanas atrozes realizadas pelo comércio escravista, e temiam, além do mais, que os professores, a partir de seu modelo particular de civilização, ensinassem aos jovens a rejeitar sua própria identidade cultural.

Suas desconfianças estavam carregadas de tristes razões. Desde o século XV até o XIX, uns 15 milhões de homens e mulheres, em sua melhor idade produtiva e reprodutiva, tinham sido transportados para as colônias americanas, onde contribuíram como mão-de-obra forçada nos processos de formação da economia capitalista. Enquanto isto, o continente africano, privado da potência de sua juventude e aniquilado pelo impacto físico e moral da barbárie, começou a entrar em decadência e a declinar para um atraso que, não por acaso, era inversamente proporcional ao desenvolvimento europeu.

Além do mais, os pais de Fuladu intuíam que os professores da colonização seriam tão devastadores quanto os antigos traficantes. Os traficantes de escravos usurpavam a ‘mercadoria’ e se iam embora; em troca, os novos senhores tinham por objetivo permanecer e explorar as matérias-primas, os minerais, os diamantes... Para consegui-lo, faltava-lhes agir também sobre as consciências e dividir as comunidades semeando hostilidade entre elas e a dependência do exterior.

Nessa conjuntura, a escola, porta-voz do poder colonial, desenvolveu um eficaz papel repressor ao inculcar um princípio realmente destrutivo: antes da chegada do homem branco, a África vivia no nada, sem língua, sem cultura, sem história. Após alguns anos, as crianças do Fuladú, mais ou menos alfabetizadas, conheceriam pessoalmente a paisagem européia. Recrutados como soldados, lutaram contra o nazismo, encarnado num Terceiro Reich que enchera o continente de campos de extermínio. De volta para casa, foram compensados com o esquecimento e, muito pior, com a morte, os que ousaram reclamar um tratamento justo por sua ‘aventura’ ao lado dos ‘bons’, do lado aliado. O que pensavam eles? Os negros não tinham direito à liberdade que haviam defendido para os brancos. Remetendo-nos à idéia de Kapuscinski, diremos que o encontro com o Outro havia se estabelecido a partir da dialética da violência, do desprezo e da humilhação, ‘justificada’ moralmente por suposta superioridade racial dos dominadores e traduzida numa contínua e implacável apropriação dos recursos.

Antes Pierre que Ibrahim

E a história continua com a passagem das gerações. Encontramo-nos com os filhos desses soldados da Segunda Guerra Mundial empreendendo a viagem da emigração, a partir dos anos oitenta, expulsos de seus países pelos planos de ajuste estrutural do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, que empobreceram e endividaram os povos do Terceiro Mundo. E agora nos encontramos também com alguns netos, nascidos já num Primeiro Mundo, que se apresenta como paradigma integrador de democracia e bem-estar, e neste cenário ‘privilegiado’ os escutamos lamentar que ‘minha cor é minha dor’, porque o ‘empresário sempre contrata um Pierre ou uma Céline antes de um Ibrahim ou de uma Fatoumata’. São esses jovens que perambulam sem horizonte nem futuro pelos subúrbios de algumas cidades européias, e que se reconhecem na prática, excluídos dos direitos de cidadania nos quais foram educados; os mesmos, por exemplo, que em novembro do ano 2005 provocaram importantes distúrbios na banlieu (zona de subúrbios) de Paris e alguns nascidos em outras localidades de forte presença imigratória como Berlim, Colônia, Lisboa e Bruxelas.

Vivem em bairros que triplicam o índice de greves da média nacional, enquanto a mídia informa os superávits das grandes empresas obtidos à custa dos despidos trabalhadores. Paradoxos da globalização que converte muitas pessoas em supérfluas pela lógica fria do benefício econômico: «Apareceram centros muitos industrializados de crescimento acelerado ao lado de desertos improdutivos, e estes não estão só por aí afora na África, e sim também, em Nova York, Paris, Roma, Madri e Berlim. A África está em todas as partes, como símbolo da exclusão. Existe uma África real e muitas outras metafóricas, na Ásia e na América Latina, mas também nas metrópoles européias onde as desigualdades do Planeta em sua tendência globalizada e local vão deixando sua marca particular»2.

E neste contexto os filhos dos imigrantes são –e se sentem- duplamente discriminados: pela classe social e pela origem cultural. Não é casualidade que durante a revolta levantaram sua mão também contra a escola, emblema da igualdade de oportunidades que eles precisam mais que ninguém, mas que a realidade lhes nega.

De que lhes serve a formação e os valores aprendidos se quando optam por uma oferta de trabalho devem camuflar sua identidade, os nomes de Mohamed, de Sekou ou de Alima, para conseguir uma entrevista pessoal? Finalmente, a cor -«minha dor»- não engana, e o lugar está sempre reservado para um tal Pierre que nem se apresentou à entrevista. Tomamos nota da mensagem desses jovens frustrados: na democracia não se pode admitir que o encontro com o Outro continue se baseando na exclusão por motivos de identidade, mantendo a herança da velha ordem da submissão que padeceram seus avós de nossa história real e simbólica de Fuladú.

A última segregação

Pelo contrário, à democracia corresponde –e este é o principal desafio que lhe é colocado hoje em dia– incluir em termos de igualdade a imensa diversidade cultural que conflui em seus espaços nacionais. É necessário que haja outro salto qualitativo em sua evolução histórica desde que nasceu muito deficitária na antiga Grécia onde as mulheres, os estrangeiros e os escravos não eram sujeitos de direito. Admitida a maioridade política da mulher, atualmente deve-se suprimir a última segregação e incorporar as minorias à plenitude de direitos reconhecidos para o resto da população.

Os imigrantes contribuem para riqueza econômica, sócio-cultural e demográfica das cidades onde residem e devem ter os mesmos direitos cívicos, políticos e sócio-econômicos já que a lei lhes exige os mesmos deveres. O exercício do direito ao voto –que a maioria dos países europeus negam aos não nacionais– representaria o reconhecimento efetivo de sua contribuição ao bem-estar geral e reforçaria os vínculos de pertença à comunidade democrática. Porque, enquanto o imigrante não votar, ele é um súdito ou não é um cidadão. E uma democracia autêntica não pode ser construída com súditos minorizados ou desprezados e sim com cidadãos livres que, independentemente de sua procedência, exercerão seus direitos e responsabilidades em igualdade de condições.

Referimo-nos aos direitos políticos, mas também aos direitos sociais: ao trabalho, à moradia, à saúde, à educação... aos direitos humanos que apresentam um ritmo de globalização muito inferior ao das transações financeiras.

Faz três décadas que o então presidente do Senegal, Leopold Sedar Senghor, já situava a diversidade em suas justas coordenadas. Advertia que não pode haver uma nova ordem econômica internacional enquanto não houver uma nova ordem cultural internacional, porque os países desenvolvidos consideram-se superiores a partir do ponto de vista cultural, não se sentem moralmente obrigados a deixar de explorar os países do Terceiro Mundo. O certo é que se a partir da razão política global não se coloca fim ao empobrecimento do Terceiro Mundo, falar de democracia e diversidade fica na pura retórica. Enquanto isto, as áfricas reais e metafóricas, por aí afora ou envolvendo as grandes metrópoles do mundo, batem na porta e exigem sua democrática participação no estabelecimento de um novo modelo de progresso sustentável para toda a humanidade.

A história universal de Fuladú que agora nos toca escrever é a de um encontro com o Outro de tu a tu, partindo do respeito e da reciprocidade e eliminando os argumentos racistas chamados a perpetuar os desequilíbrios mundiais e as desigualdades locais, autêntica fonte dos conflitos. Não existem culturas incompatíveis ‘por natureza’ com um processo de desenvolvimento nem com a democracia. Existem diferentes experiências históricas, diferentes formas de conceber a vida e o fabuloso instrumento do diálogo para facilitar o conhecimento. Todas as culturas são capazes de contribuir com valores úteis para o progresso da humanidade e a democracia finalmente deve entender que o direito à igualdade é o direito à diferença, e que o direito à diferença é o direito à igualdade. A diversidade ou a diferença não é o contrário à igualdade. O contrário da igualdade (sinônimo de justiça) é a desigualdade (sinônimo de injustiça).

A diferença tem implicações culturais legítimas com as quais podemos nos relacionar e enriquecer mutuamente; pelo contrário, a desigualdade é uma construção social que devemos combater em defesa da própria democracia.

Assinam este artigo: Sacri Buesa, Joan Colomer, Rafael Crespo, Eugènia Cros, Aliou Diao, Pau Lanao, Anna López, Joan Manuel del Pozo, Núria Terés, e Carme Vinyoles.

Notas: (1) Ryszard Kapuscinski, Reencontré l’etranger, cet événement fundamental, Le Monde Diplomatique, janeiro, 2006. (2) Ulrich Beck, La revuelta de los superfluos, «El País», Madrid, 27de novembro de 2005.

 

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Girona, Catalunha, Espanha