Mulher e Sumak Kawsay, bem viver

Mulher e Sumak Kawsay, bem viver

Margot Bremer


A visibilidade das mulheres no espaço público só foi possível através da luta organizada de muitas mulheres que romperam com uma tradição milenar de subordinação. O mais revolucionário foi a mudança a uma nova visão da humanidade, ao ter resgatado os seres humanos do binômio mulher/homem para a inter-relação entre eles, libertando a sociedade, não só de um olhar androcêntrico do mundo, mas também dos estereótipos inadequados de gênero. A partir de agora, o homem e a mulher devem ser considerados iguais, respeitando e valorizando mutuamente sua diversidade. Mas isso é apenas o começo de um processo que precisa ser feito para inaugurar uma nova era. Neste momento histórico, com involuções drásticas e ao mesmo tempo importantíssimas evoluções, ainda não se conseguiu alcançar o equilíbrio entre os gêneros. Deve-se continuar a lutar, pois o reconhecimento da igualdade de gênero é um paradigma para a restauração de muitos outros desequilíbrios entre supostos antagonismos.

Alguns Princípios de Vivência do Sumak Kawsay

Para poder inter-relacionar a causa da Mulher com o Sumak Kawsay, o Bem Viver, é necessário conhecer alguns princípios do mesmo. A utopia do Bem Viver se baseia numa concepção cósmica da realidade, concebida nas terras andinas da Abya Yala, há milhares de anos, uma proposta de convivência chamada Sumak Kawsay pelos quechuas, que inclui toda a sociedade humana e todas as formas de vida que existem na terra. Nela não deve haver desigualdade de direitos, nem entre a vida da natureza e a vida humana, nem entre homem e mulher, nem entre indígenas e não indígenas, nem entre grupos sociais, nem entre as divisões territoriais... Deve haver condições favoráveis de vida para todos. O que sustenta, fortalece e desenvolve esta vida em sua rica diversidade é a qualidade das inter-relações que apontam para uma comunidade cósmica. Esta comunidade é construída na diversidade sobre os princípios de Sumak Kawsay: reciprocidade, solidariedade, igualdade e respeito mútuo à diversidade. Conta com o apoio de todos. Aqui, a diferença entre a mulher e o homem não se concentra num status de igualdade, mas é definido em uma relação dinâmica orientada para a interdependência e a complementaridade. Com respeito a este princípio comenta Fernando Huanacuni Mamani: «Tudo e todos somos parte da Mãe Terra e da vida, da realidade. Todos dependemos de todos, todos nos complementamos. Cada pedra, cada animal, cada flor, cada estrela, cada árvore e seu fruto, cada ser humano: somos um só corpo, estamos unidos a todas as outras partes ou fenômenos da realidade». A prática deste inter-relacionamento na reciprocidade nasce de uma profunda sabedoria e espiritualidade cuja mestra é a própria Pachamama, que conduz tudo para uma convivência equilibrada entre as formas de vida que existem nela.

Os povos andinos afirmam que o Sumak Kawsay é um «sonho para todos os seres humanos, não apenas para os povos indígenas». Esta proposta nos anima a buscar sintonias existentes entre esta proposta dos povos indígenas e a visão feminista sobre a vida e a convivência.

Coincidências do Bem Viver e a Causa das mulheres

Na perspectiva das mulheres, o cuidado e sustentabilidade da vida sempre foram prioridade; a mesma coisa nos afirma a utopia do Bem Viver. Esta visão é inerente aos dois «movimentos» que estão emergindo neste momento histórico com grande vigor. Sabemos que uma nova visão pode impulsionar também uma mudança na visão política, de como sustentar a vida de um país e do mundo. O Bem Viver busca o equilí-brio humano e ambiental para chegar a uma convivência harmoniosa, assim como as mulheres o plasmam no ecofeminismo. Para este fim, ambas as partes, Mulheres e Bem Viver, lutam por uma nova proposta de diminuição do consumo e redução de um estilo de vida que foi imposto pelo capitalismo individualista. A experiência adquirida nesta luta afirma que no meio deste processo de libertação já começa o Bem Viver. «Inserir-se no caminho da libertação já é um Bem Viver, um caminho de graça», afirma Elsa Tamez.

Visão Holística

O desafio de sustentar a vida na terra, necessita uma visão holística e equilibrada, presente tanto nas mulheres como no Sumak Kawsay. Tanto a terra como as mulheres são geradoras e cuidadoras da vida. Ambas, por natureza e trajetória, se caracterizam por sua abertura à diversidade. As mulheres lutam por serem reconhecidas como seres humanos, nem inferior, nem superior, apenas diferentes do homem, com base em novos relacionamentos. O Bem Viver defende o ser humano como parte da natureza. Ambos buscam, a partir de uma visão holística, a totalidade num harmônico equilíbrio entre as diversidades. Imagine como seria a partir desta dupla perspectiva, a redistribuição dos produtos em nível econômico, assim como a eliminação dos privilégios e desigualdades em nível social!

A diversidade aponta para mais comunitariedade

Na luta das mulheres pela igualdade, o seu objetivo nunca foi a inversão da ordem atual: não buscam o «outro lado da moeda», para assumirem elas o papel dos homens na sociedade. Não. Tanto as mulheres, como o modelo do Bem Viver, buscam a unidade dentro da diversidade, pois quanto mais se organizam em grupos particulares, mais aumentam seu sentido comunitário/social. A diversidade é tão necessária para a vida da humanidade como a biodiversidade para a vida em si mesma. Na verdade, algumas crises provocada pela diversidade, ajudam a tomar consciência das reais necessidades do ser humano.

Da desigualdade à diversidade

As desigualdades existentes são uma das principais causas para a luta por mais igualdade. Uma situação de desigualdade é o espaço em que ressurge a consciência de experimentar-se despojado/a de seus sagrados direitos à igualdade e à liberdade. A libertação das desigualdades injustas busca necessariamente outro modelo de convivência no qual ninguém se sinta marginalizado ou excluído. A desigualdade sempre é uma ameaça a uma ordem injusta estabelecida, que impossibilita relações harmônicas. Esta situação tinha sua matriz numa inter-relação desequilíbrada entre homens e mulheres. Hoje urge sair de uma visão unilateral e monofacética da realidade e entrar em outra mais multilateral e plurifacética para ver toda a realidade. As contribuições, tanto das mulheres e do Bem Viver, em sua luta por igualdade entre os gêneros e entre os grupos étnicos são significativos para a mudança de nossa sociedade. Pois, ao incluir o direito da diversidade, porém com igualdade, surge uma nova oportunidade para organizar o futuro em torno a diferentes perspectivas, que podem acelerar o desenvolvimento de uma sociedade alternativa: mais plural, diversa, complementária, igualitária e integral. A luta das mulheres e do Bem Viver por mais igualdade é pioneira para chegar a uma sociedade alternativa.

Reflexões finais

Apesar das grandes coincidências que encontramos entre as lutas e propostas das mulheres e o Bem Viver, existem também algumas diferenças. Por exemplo, na perspectiva do Bem Viver não é concebível que cada um/uma lute pela melhoria de sua própria vida, senão que é prioritário que todos os seres humanos, junto com todos os seres viventes nesta terra, vivam bem.

Há outra diferença no aspecto do Bem Viver: é impensável que as mulheres percebam-se individuais e isoladamente; a natureza está nelas, as constitui, dá um sentido de pertença; no entanto, esta visão está ausente na mulher moderna. Mas nós sabemos que as diferenças são complementares. Tomemos o caso do consumismo, que sempre busca em primeiro lugar as mulheres, alienando-as. As mulheres devem ser as primeiras a aprender do Bem Viver para entrar num processo de descolonização. Os povos andinos tinham exercido durante séculos a descolonização a fim de «ressignificar» permanentemente seu projeto de vida...

Tenhamos sempre presente que na busca para transformar as desigualdades não é suficiente conformar-se com apenas uma perspectiva; muitas são necessárias para se conseguir uma verdadeira mudança civilizacional. Os movimentos que defendem novas perspectivas, devem articular-se para superar o legado de um patriarcado monolítico que impediu de perceber outros pontos de vista da nossa realidade.

É hora de refazer o «caminho único. Vivemos em um kairós, em que a abertura à diversidade, tanto na perspectiva do Bem Viver como das mulheres, sintoniza com a irrupção do pluralismo que rompe com o «pensamento único».

Descolonizar e «ressignificar» são tarefas permanentes a fim de articular a partir de sua própria particularidade para uma unidade na diversidade. O Reconhecimento da diversidade, pelo qual estão lutando as mulheres e o modelo do Bem Viver, encontra seu sentido quando procuram realizar projetos comuns.

É muito necessário hoje uma aliança entre as mulheres e o Bem Viver para testemunhar juntos novos caminhos que gerem uma humanidade e um mundo com maior igualdade e unidade na diversidade.

 Margot Bremer

Assunção, Paraguai