Mudança climática e direitos humanos

Mudança Climática e direitos humanos

Ivo Poletto


1. Direitos da Terra, condição para os DDHH

Para falar de forma adequada à realidade e à consciência crítica do início do século XXI, é preciso ter presente as relações entre os Direitos Humanos (DDHH) e os direitos da Terra, também denominados direitos da natureza. Para que se possa afirmar e garantir que as pessoas e povos têm direito a um meio ambiente favorável à vida é absolutamente necessário garantir que a Terra tem direito ao que ela criou para que exista um ambiente terrestre favorável à vida.

Praticamente em todas as constituições dos Estados estão afirmados os direitos individuais e coletivos das pessoas. Entre eles, o direito ao meio ambiente e, coerentemente, a obrigação pública de cuidar dele. Mas seu limite está no antropocentrismo de sua formulação. É ele que faz com que se mantenha nestas constituições a ilusão ideológica de que seria possível garantir o Direito Humano e o cuidado com o ambiente natural e, ao mesmo tempo, manter em expansão constante empresas de livre iniciativa capitalista, que têm como base a apropriação privada de bens naturais do solo e subsolo e sua transformação, através de processos industriais e apropriação e uso de trabalho humano, de tecnologias e técnicas de produção. Nas últimas décadas, estas empresas têm exigido liberdade absoluta em âmbito global, consolidando um mercado de capitais e de mercadorias que está levando a um estresse ameaçador a Terra. E o resultado desse processo é o desmonte do que havia de “estado de bem estar social”, com aumento do desemprego, da exploração do trabalho, e uma concentração cada vez mais assustadora da riqueza mundial.

Com a contribuição dos povos indígenas, que decidiram levar ao espaço da política democrática sua prática comunitária do Bem Viver, a Bolívia e o Equador deram um passo inovador no reconhecimento dos direitos da Terra. Na Constituição da República do Equador, elaborada por uma assembleia constituinte exclusiva e soberana, estes direitos estão no 7º capítulo: “A natureza ou Pacha Mama, em que se reproduz e realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estruturas, funções e processos evolutivos”. Ou seja, Pacha Mama tem ciclos vitais anteriores aos dos seres humanos; na verdade, a vida humana só se tornou possível com a manutenção dos seus processos evolutivos, que geraram a biodiversidade em que se tornou possível o salto da vida para a forma humana. Por isso, sem o reconhecimento e garantia dos direitos de Pacha Mama, diminuem e vão desaparecendo as condições para o direito humano ao ambiente vital e, na verdade, para todos os DDHH.

2. Agressões provocam mudanças climáticas

Por serem tão graves e profundas as interferências humanas nas estruturas vitais da Terra, alguns pesquisadores já trabalham com a hipótese de que o tempo geológico do holoceno está sendo substituído pelo antropoceno. Isso significa que ações humanas estão conseguindo provocar o fim do período de 11 mil anos em que o clima terrestre foi mais equilibrado e favorável à multiplicação de espécies vivas, inclusi-ve a humanidade, que já ultrapassa os 7 bilhões de indivíduos.

Segundo os pesquisadores que trabalham em mutirão no IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas -, e com a confirmação de outros centros de pesquisa, o processo de mudança climática teve seu início em torno de 1750, com a denominada revolução industrial capitalista. Quatro fatores foram e continuam essenciais: a) a descoberta sucessiva de fontes mais eficientes de energia: carvão, gás, petróleo; b) o desenvolvimento de novas tecnologias e máquinas, dando velocidade à extração de matérias-primas da natureza e à produção e comercialização das mercadorias; c) a internacionalização do mercado capitalista, especialmente com a hegemonia do capital financeiro na época da globalização neoliberal; d) desenvolvimento da capacidade de gerar ideologicamente necessidades nos consumidores, através dos processos de mídia, e de controlar o tempo útil dos produtos, planejando sua obsolescência, expandindo o consumismo e o desperdício.

Tudo somado, a humanidade está conseguindo, através dos capitalistas comandantes, que a quantidade de CO2 na atmosfera já tenha ultrapassado 400 ppm, isto é, 400 partes de cada milhão que a constitui. Isso é muito, tendo presente que nos últimos 7 mil anos do período do holoceno o CO2 na atmosfera se manteve em 280 ppm, e isso fez que a temperatura da Terra tenha sido, em média, 14,5ºC. Agora, com 400 ppm, a temperatura média do planeta já está praticamente 1 grau acima. Houve clara e comprovadamente um processo de aquecimento da Terra.

Esse aquecimento, combinado com outros processo de poluição e contaminação, é o principal causador das mudanças climáticas. Isto é, fenômenos naturais, como chuvas, ventos, neves, tormentas marítimas, secas... mudam de intensidade e se tornam ameaças à vida em suas variadas formas. Enchentes cada vez maiores e secas mais prolongadas, assim como furacões mais intensos e o aumento do nível das águas dos oceanos tornam inabitáveis áreas continentais densamente povoadas. Onde viverão os milhões de migrantes e imigrantes climáticos?

3. A necessária luta por justiça ambiental

Quem sofre mais intensamente os efeitos das mudanças climáticas: os 85 multibilionários que têm o mesmo patrimônio de 3,5 bilhões de seres humanos, e que são os principais causantes dos processos de aquecimento do planeta? Ou são os 3,5 bilhões que já são forçados a repartir entre eles a parte que sobra do processo coletivo de geração de riqueza?

Esse é o paradoxo: os que promoveram e mantém em expansão a denominada “civilização do petróleo” e “civilização do consumismo” globalizado, e são os maiores causantes do aquecimento do planeta, sofrem menos com as mudanças climáticas do que os bilhões de empobrecidos que quase nada têm a ver com elas. O mais afetados são as pessoas, famílias, comunidades e povos que vivem em territórios pilhados até o extremo pelos processos de colonização moderna, a iniciada no século XVI e especialmente a planejada no século XIX para espoliar a África e parte da Ásia de suas riquezas naturais, e pelas relações neoliberamente desiguais do atual comércio globalizado.

Os povos empobrecidos têm direito ao ressarcimento pela dívida ecológica e o direito de exigir que os causadores do aquecimento assumam suas responsabilidades: aceitem implementar mudanças profundas em tudo que agride e provoca desequilíbrios no Planeta e ajudem os povos afetados a enfrentarem os problemas criados pelo aquecimento global. Como se sabe, se estas mudanças dependerem de sua vontade nunca acontecerão; ao contrário, gastarão mais recursos para enganar a humanidade, promovendo campanhas de desinformação sobre a tragédia que se aproxima, apresentando-se como inocentes e promotores do “progresso”. A luta por justiça ambiental precisa ser assumida pelos povos afetados, construindo formas de vida com boa convivência com a Terra em seus territórios e forçando as mudanças globais que devem ser feitas em favor de todas as formas de vida.

4. DDHH e da Terra em tempos de mudança climática

A fome, que ainda provoca morte precoce de muitas pessoas, especialmente crianças e idosos, não pode ser considerada uma fatalidade ou fruto da falta de iniciativa dos empobrecidos. Está comprovado que ela é provocada pelo mesmo processo de concentração do crescimento econômico capitalista, de modo particular pelas empresas que controlam as bolsas de cereais e mercadorias, que são instrumentos da inclusão dos alimentos entre as commodities ligadas à especulação financeira que domina e desgraça o mundo atual. Cada aumento especulativo do preço dos grãos significa decreto de condenação à morte por fome das pessoas que não têm “poder em dólar” para ter acesso a eles.

É por isso que já se defende que a fome, assim como o foi a moderna escravidão, é um crime contra os Direitos Humanos, e como tal, deve ser “abolida”, e os criminosos, levados às barras dos tribunais, julgados, condenados e forçados a abandonarem suas práticas criminosas. Da mesma forma, como já estão identificados os causadores do aquecimento global que provoca agravamento das mudanças climáticas, que causam mortes e deslocamentos forçados de pessoas e graves desequilíbrios nos processos que mantém a vida da Terra, suas práticas devem ser constitucionalizadas como crimes contra os DDHH e contra os direitos da Terra, e seus autores, julgados, condenados e forçados a abandonares as práticas criminosas.

É urgente, por tudo isso, que mais povos e países reconheçam em suas constituições republicanas os direitos da natureza, Pacha Mama, Terra. E que todas as lutas por DDHH, duramente ameaçados pelos mesmos processos de globalização capitalista neoliberal que fere o meio ambiente natural, sejam sempre ligadas com a luta pelos direitos da Terra.

 

Ivo Poletto

Goiânia, GO, Brasil