Midia e construção de imagem

Onde ficam as mulheres?
Midia e construção de imagem


Na comédia francesa «Como uma imagem» (Comme une image) , da inteligente diretora Agnes Jaoui, a personagem de Lolita deve lutar com um corpo que trai os cânones de beleza atuais e que, crê ela, afugenta o interesse dos outros no que nela se destaca: o canto coral, com uma voz maravilhosa. Gorda, com traços comuns, sem graça, mal vestida, Lolita nos faz pensar nas mil e uma formas que se revestiu a discriminação da mulher em nossa sociedade. Não importa a inteligência, nem os dons, nem os estudos acadêmicos, nem os lucros, nem a simpatia, nem a coragem para enfrentar a vida se não são expostos numa bela embalagem. O discurso dominante reforça em cada mulher que a imagem é prioritária e que deve pôr todo seu empenho em conseguir a perfeição física e conservá-la.

Se tudo se resumisse num breve momento, quem sabe poderíamos tratar o assunto como algo passageiro e sem maior importância. Mas na Argentina, onde se realiza a maior quantidade de cirurgias estéticas do mundo em relação ao número de habitantes, também as estatísticas nos mostram que a anorexia e a bulimia provocam complicações entre milhares de adolescentes e jovens que se convencem de que só serão aceitas e amadas caso se ajustem às medidas e ao “look” perfeito. Neste século XXI parece ser que o controle sobre o corpo das mulheres já não passa pela repressão de sua sexualidade, mas pelo ajuste a um modelo físico praticamente inatingível, que para atingir e conservar exige horas de dedicação e esforço, quando não um bom investimento de dinheiro. Os meios de comunicação reforçam esta imagem, gerando uma distorção importante de necessidades e expectativas. Um exemplo desta coisificação do corpo da mulher demonstrou a televisão, através de uma jovem que acabava de realizar um implante mamário: «Estou feliz com esta cirurgia. Agora os homens já não me olham nos olhos, olham-me os seios». Sentir-se objeto é também um passo no caminho à felicidade?

Quebrando a dominação do mercado

A implantação destas imagens de mulheres coisificadas acompanha a imposição de uma visão neoliberal do mundo e da economia. Os padrões de beleza que se difundem pelos meios de comunicação globalizados são componentes da cultura mercantil dominante. Por meio do cinema, da televisão, das revistas de moda e da publicidade - que cada dia têm mais peso na formação de comportamentos e gostos universais -, este modelo se associa, por sua vez, ao sucesso, ao poder e ao dinheiro. Dá-se a impressão de que só vale aquilo que se leva vantagem, e a beleza pode converter-se num fator para conseguí-lo. Se a isto ainda agregamos o velho estereótipo de que os lindos são bons e os feios são maus, obtemos um resultado bastante nefasto.

Mas, podemos pensar numa comunicação que não reflita a diferentes mulheres e homens que integram nossa sociedade, nem sua diversidade cultural, nem suas necessidades sociais, nem seus direitos econômicos assim como os de seus povos? Será possível que fiquem fora das filmadoras, dos videos, dos CDRom, das gravadoras, das rádios e da Internet as imagens e as vozes, que mostram mulheres participando da vida de seus países, dos movimentos sociais, das expressões culturais próprias de seus povos e da resistência ao modelo econômico e cultural que se pretende impor?

O movimento de mulheres e feminista conseguiu incluir a seção J, sobre «Mulher e Meios de Comunicação», na Plataforma de Ação de Beijing, a qual resultou da IV Conferência Mundial da Mulher celebrada com o auspicio de Nações Unidas em Beijing, em 1995. Ao fazê-lo, pensou tanto na necessidade de que a toda sociedade trabalhe para superar a imagem estereotipada da mulher nos meios de comunicação, incluindo os donos dos meios, como em exigir uma plena participação das mulheres na nova era da comunicação digital que, então, se iniciava. Que a Plataforma de Beijing trate, com tanta clareza, do acesso das mulheres ao uso e produção de conteúdos, utilizando as novas tecnologias da informação e da comunicação, é, sem dúvida, resultado de um movimento de mulheres atento aos novos desenvolvimentos mundiais e disposto a ir ocupando espaços onde se tomam decisões que são cruciais para o avanço de seus direitos e para um desenvolvimento com igualdade de oportunidades e equidade nos resultados.

A luta das mulheres, dos indígenas, dos camponeses sem terra, das vítimas da discriminação racial, cultural e étnica, dos ambientalistas, dos desempregados, dos jovens, fala-nos de atores sociais que exigem reconheci-mento. Os avanços conseguidos nos últimos anos pelas novas tecnologias da informação e da comunicação abriram importantes possibilidades para se fazer visíveis os avanços destes movimentos, a participação e o protagonismo das mulheres em todos eles.

Por outra comunicação possível

Para construir uma comunicação na perspectiva de gênero, terá que se ter em conta de que é necessário quebrar o discurso da cultura dominante que contínua atribuindo determinadas funções, características e comportamentos às mulheres sem reconhecer que o poder patriarcal em nossa sociedade continua sendo forte e ainda pode silenciar ou fazer invisíveis as vozes e as imagens que o questionam. São nos meios onde se gera e se transmite a informação, à qual atribui importância a sociedade. São também neles onde se formulam, fortalecem e se alimentam os movimentos de opinião pública, que na atualidade estão substituindo os movimentos políticos. É por este motivo que existe a necessidade de que os meios representem apropriadamente o pluralismo de imagens e de discursos que são gerados na sociedade, sem discriminações de nenhum tipo.

O direito à comunicação exige pluralidade de fontes de informação e de meios de comunicação, e uma gestão democrática e transparente das políticas de comunicação, para que as imagens e as vozes que se transmitem não fiquem condicionadas num único modelo que a globalização neoliberal quer digitar, assumindo e propagando velhos poderes hierárquicos até nas relações entre homens e mulheres. Como assinalou um colega radialista num painel celebrado durante o último Fórum Social Mundial, «para que outro mundo seja possível, outra comunicação é indispensável».

Frente a tudo isto, valerá a pena esforçar-se para atingir a beleza? As mulheres que lutam por seus direitos e por uma sociedade melhor sabem de que o esforço deve estar em outra parte, na construção de modelos que questionem o poder de um sexo sobre o outro, que rompam com a privatização de valores e de sentimentos e com as regras de um mercado que há tempo que se esqueceu da solidariedade e dos direitos dos povos. Junto a seus colegas de caminhada saberão construir relações em que a beleza se refletirá em cada mulher e em cada homem que se sintam plenos, seguros e amados, olhando-se aos olhos e não coisificando seus corpos.