Liberdade e democracia

Liberdade e democracia

Federico Mayor Zaragoza


“Um novo começo” que represente a transição histórica da força para a palavra, da cultura de imposição, domínio e violência para a cultura de diálogo, conciliação, aliança e paz.

Durante séculos, alguns homens dominaram o resto dos homens e das mulheres. A presença feminina nos teatros do poder foram fugazes e miméticas. A própria vida era de subordinação sem contestações para seres humanos amedrontados, que viviam confinados tanto territorialmente quanto intelectualmente em espaços muito limitados, onde nasciam, viviam e morriam.

Mas, graças às tecnologias modernas de comunicação e informação nos últimos anos finalmente vem sendo possível expressar-se sem obstáculos, de forma tal que hoje é possível apreciar mais o que se tem, mas também conhecer melhor as precariedades dos outros. Junto a essa consciência global, imprescindível para o “proceder consciente” no comportamento cotidiano, junto aos meios técnicos para essa projeção para além do nosso entorno físico, destaca-se o crescimento progressivo do número de mulheres em atitudes de tomada de decisão.

Estamos vivendo, portanto, momentos fascinantes que podem vencer a inércia que vem impedindo, há séculos, o progresso, sobretudo em um ponto de vista intelectual e espiritual.

Gosto de repetir que a evolução, como nos mostra a natureza, é o caminho adequado: conserva-se o atemporal, o essencial, e muda-se aquilo que serviu em um dado momento, mas que agora precisa ser substituído. Aqueles que estão apegados aos seus privilégios são reticentes em reconhecer a necessidade dessas transformações e em aceitar que as fórmulas de ontem podem deixar de ser válidas para o presente e para o amanhã.

Evolução ou revolução: a diferença está no “r” de responsabilidade. Como seres responsáveis, devemos nos esforçar para que, com a capacidade de prognosticar que caracteriza a espécie humana, evite-se o discurso da violência. A grande virada da força para a palavra, que só pode ser efetivada por seres humanos “educados”. A Constituição da UNESCO descreve tal elemento lucidamente em seu artigo primeiro, escrito em circustâncias de grande tensão na humanidade, após uma guerra mundial em que foram utilizados os mais abomináveis mecanismos de extermínio. Uma guerra de holocausto, genocídio e total desapreço pela espécie humana. Diz o artigo: “Educar é contribuir para a formação de seres humanos livres e responsáveis”.

Livres e responsáveis! Esta é a educação que pode, em pouquíssimos anos, tornar realidade o grande pilar sobre o qual se assentam todos os demais direitos e deveres: a dignidade igual de todos os seres humanos. Sejam homens ou mulheres, ricos ou pobres, de qualquer ideologia, crença ou raça... todos os seres humanos iguais em dignidade. Todos livres, todos responsáveis.

A liberdade é o dom supremo. Cada ser humano único, capaz de pensar, de imaginar, de esperar, de crer. Cada ser humano dotado da capacidade de discernir, de decidir a cada instante sob o escrutínio das luzes e das sombras, das certezas e das incertezas.

A liberdade humana, única condição nos desígnios da criação. Tudo é prescindível no universo, tudo é submetido às leis imutáveis da física e da química... menos a discricionariedade humana.

Acrescenta a Constituição da UNESCO em seu preâmbulo: “O comportamento será guiado pelos princípios democráticos da justiça, liberdade e solidariedade intelectual e moral”. Por não termos seguido estas claríssimas orientações da organização intelectual do Sistema das Nações Unidas, não foi possível por em prática o clarividente início da Carta “Nós, os povos...”, visto que não foram os povos e sim os Estados os que se fizeram representados na Assembléia Geral. E deram empréstimos ao invés de ajudas, impuseram a exploração dos recursos naturais ao invés de oferecer cooperação internacional e, o pior, em poucos anos os “globalizadores” conseguiram substituir os valores éticos pelos financeiros, dos princípios democráticos pelas leis do mercado, das Nações Unidas pelos grupos plutocráticos que, sobetudo no Ocidente, levaram a uma crise econômica sistêmica de gravíssimas consequências.

O tempo do silêncio, da submissão, da obediência cega terminou. Chegou o momento da grande transição de uma cultura de imposição, domínio e violência para uma cultura de diálogo, conciliação e paz. Chegou o momento, em um contexto plenamente democrático, de aplicar os Direitos Humanos de tal modo que seja possível, como estabelece o primeiro parágrafo do seu Preâmbulo, “libertar a humanidade do medo”.

É necessária uma Declaração Universal da Democracia – ética, política, cultural, econômica internacional, que permita alçar sem limites nossas asas ao espaço infinito do espírito.

Já não mais como expectadores impassíveis, silenciosos, distraídos.

Como indica a Carta da Terra em seu início, “estamos em um momento crítico da história da Terra, na qual a humanidade deve escolher seu futuro. Na medida em que este mundo se torna cada vez mais interdependente e frágil, o porvir nos reserva ao mesmo tempo grandes riscos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que em meio à magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma única família humana e uma única comunidade terrestre com um destino comum. Devemos unir-nos para criar uma sociedade global sustentável fundada no respeito para com a natureza, os direitos humanos universais, a justiça econômica e uma cultura de paz.

 

Federico Mayor Zaragoza

Fundação Cultura de Paz, Madri, Espanha