Fora da política não há salvação

Fora da política não há salvação

Frei Gilvander Moreira


«Somos seres políticos», já dizia Aristóteles. Ingenuidade dizer: «Sou apolítico. Não gosto de política. Sou neutro». Todos nós fazemos Política o tempo todo. Política é como respiração. Sem respiração, morremos. «Política» refere-se ao exercício de alguma forma de poder. Os desmandos dos governantes, que em nome do exercício desse poder destroem a vida em suas múltiplas formas, têm nos levado a reflexões mais profundas sobre a Política. «Será que a Política ainda tem, de algum modo, um sentido?», pergunta Hannah Arendt, após o incêndio do parlamento alemão, fenômeno que marcou o prelúdio do nazismo.

O colapso da União Soviética e do Leste Europeu levou à afirmação do neoliberalismo. Este fez com que o poder econômico tomasse o lugar da Política. As prioridades dos governos não são mais o bem estar social, mas a segurança. A democracia liberal sofreu um impacto devastador diante do preço da segurança e do abandono das políticas sociais. A indústria da segurança cresce em uma progressão geométrica. Os EUA arvoram-se como «polícia do mundo». Parece mesmo que há uma parceria macabra entre os bandidos e os empresários da segurança: quanto mais medo mais a indústria da segurança lucra: armas, guerras, ações anti-terror, construção de muros. Há hoje os seguintes muros planejados ou em curso: 747 km entre Israel e a Palestina; 814 km entre a Arábia Saudita e o Iraque; 1120 km entre os EUA e o México.

A democracia representativa nos países latino-americanos passa por uma crise que se insere no bojo de uma «crise mundial» muito mais ampla no campo social, econômico, ético, cultural, ambiental e, por que não dizer, espiritual. A política partidária mostrou-se incapaz de dar legitimidade às ações dos governos. A notícia boa fica por conta de movimentos populares e sociais que têm levado à Presidência de vários países afro-latíndios líderes com maior sensibilidade social. São exemplos, Hugo Chávez na Venezuela, Lula no Brasil, Néstor Kirchner na Argentina, Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador, Daniel Ortega na Nicarágua. A maioria deles podem ser citados como exemplos concretos de que a política morreu, mas está nascendo a Política com «P» maiúsculo. É um novo momento em que o povo organizado e socialista não apenas lidera um novo processo de transformação em seus países, mas descobre que a sociedade mais justa é aquela que formos capazes de construir. Na Política não existe mágica, não existe salvador da pátria. Política justa é processo coletivo de exercício do poder que passa pelo empoderamento dos pobres.

Descobrimos a duras penas que Política é osso duro de roer. Ou roemos este osso ou seremos roídos por ele. A política, como vocação, é a mais nobre das atividades; como profissão, a mais vil. Urge discernir, resgatar a história do candidato. «Diga-me com quem andas...». Quem o financia? Quais suas ações? Xô políticos profissionais!

Fazer Política hoje implica lutar contra o imperialismo. Na sociedade neoliberal os interesses privados são «camuflados em princípios políticos, porque os investimentos privados dependem de uma proteção governamental». Além das grandes instituições, o poder está nas pequenas e grandes organizações e também nas relações humanas. É preciso cuidar das relações humanas e da postura pessoal para que haja coerência entre a luta e o testemunho pessoal de quem luta.

Política partidária é apenas um aspecto a ser considerado. Fazer Política com P maiúsculo é construir uma sociedade sustentável, o que passa por Teologia de Libertação, por Comunidades Eclesiais de Base – CEBs -, Pastorais Sociais, Movimento Popular e Social que, sob a inspiração do Fórum Social Mundial, está resistindo contra a globocolonização e os diversos neoliberalismos, inclusive o religioso.

Não há salvação dentro do capitalismo, sistema satânico. Não dá para ser cristão e capitalista ao mesmo tempo. É intolerável um crescimento econômico que beneficia uma minoria e agride fortemente a maioria da população excluída. As lutas sociais devem estar intimamente articuladas com as ecologicas.

Os governantes têm de prestar boas contas, senão precisam ser depostos pela luta do povo organizado. É preciso continuar a luta pela democratização dos meios de comunicação. Na era da informática, o controle da informação é o poder maior. O contraponto ao monopólio da informação vem das rádios e TVs comunitárias com sinal aberto, jornais comunitários que revelem a América Latina de fato. Acompanhar as ações governamentais e os mandatos eletivos é imprescindível. São relevantes as iniciativas populares, os referendos, os plebiscitos, a participação e a solicitação de audiências públicas para o debate de temas relevantes.

É um crime os privilégios que o capital internacional recebe na América do Sul, Central e Caribe. A política econômica hegemônica continua patrocinando crimes contra a humanidade, tão degradantes quanto foi o nazismo. Entre nós as vítimas são os excluídos de sempre, os sem voz e sem vez, além do Planeta Terra com o aquecimento global. Hoje, sabemos que em um colapso dos bens naturais as maiores vítimas serão os pobres.

Temos muito que aprender com Cuba. É um povo que resiste desde 1959 ao criminoso e diabólico bloqueio estadunidense. Em Cuba, a ausência da propaganda comercial que estimula o consumo a qualquer preço nos dá conta de um povo livre para viver dignamente com muito pouco. O povo cubano não se fez refém dos transgênicos, se livrou da vergonha do analfabetismo. O povo cubano faz gestos de solidariedade sem limites: nos milhares de médicos espalhados pelo mundo inteiro salvando vidas, dos milhares de estudantes que recebem em Cuba, inteiramente de graça, diversas formações acadêmicas. Um país que não sofre os horrores da violência urbana e do cinismo da fome e da exclusão social pela acumulação material de poucos. Em Cuba se tem paz social, fruto da justiça social existente. Quem vai a Cuba percebe que lá as pessoas são reconhecidas pelo que fazem em prol da coletividade, pela solidariedade e altruísmo e não pelo que conseguem angariar para si mesmas.

Na democracia burguesa (liberal), fazer Política implica praticar desobediência civil. Faz bem inspirar-nos em alguns relatos bíblicos e nos movimentos de luta por paz. Os evangelhos (Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo 2,13-17) relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar considerado o mais sagrado e furioso, fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), ordenou: Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.

As mulheres parteiras do Egito (Cf. Ex 1,8-22), diante de um «Decreto Lei» que, para controlar a natalidade, mandava matar as crianças do sexo masculino, se organizaram e fizeram greve e desobediência civil. Não vamos respeitar uma lei autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer respeito à pessoa e não concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão, dizia, em seus corações, as Mulheres do «Movimento de saúde» do Egito. Diz a Bíblia: Deus estava com as parteiras. O povo se tornou numeroso e muito poderoso (Ex 1,20), isto é, crescia em quantidade e em qualidade.

Os pobres organizados que seguiram Gandhi e Martin Luther King Jr., mártires dos oprimidos, fizeram desobediência civil: desafio às leis injustas sem agredir pessoas. Como gestos extremos, acordaram consciências anestesiadas, cúmplices de sistemas opressivos. A não-violência de Gandhi e Luther King não diz respeito às coisas, mas, sim, às pessoas humanas. O boicote do sal e do tecido inglês na Índia, o dos ônibus segregacionistas no Sul dos EUA, e tantos outros movimentos de desobediência civil em todo o mundo causaram grandes prejuízos materiais aos capitalistas, mas trouxeram conquistas para a humanidade.

O mesmo Deus que impulsionou as parteiras, Jesus de Nazaré, Gandhi, Luther King está com os zapatistas no México, os cocaleros na Bolívia, os Sem-Terra no Brasil, com as Mulheres da Via Campesina que lutam contra a monocultura do eucalipto.

Ouçamos o conselho de Chico Buarque: «Eu semeio vento na minha cidade, vou prá rua e bebo a tempestade».

Nunca se esqueça de que apenas os peixes mortos nadam a favor da correnteza, alerta Malcolm Muggeridge. Enfim, a luta gera a esperança. Se a luta morrer, a esperança morre.

Se há luta, logo há esperança!

 

Frei Gilvander Moreira

São Paulo