Espírito para a Democracia

Espírito para a Democracia

Antonio COMÍN


A modernidade ocidental gerou dois filhos que marcaram a história dos três últimos séculos, não só no Ocidente como em todo o mundo. Por um lado, nasce-ram as ideologias políticas e suas utopias, que sonhavam com uma sociedade justa de livres e iguais em que todos fossem cidadãos com direitos inalienáveis. Por outro lado, nasceu o capitalismo, um projeto de prosperidade material, de desenvolvimento técnico e domínio da natureza. Parece que o século XX teria sido o século do triunfo do capitalismo e do fracasso das ideologias. Teria sido o século -diz-se- do «fim da história».

História já conhecida

As ideologias começaram sua derrota quando demonstraram que traíam o contrário do que prometiam. O liberalismo, o primeiro sonho moderno, um sonho de liberdade a respeito de qualquer tirania política, eco-nômica, ideológica ou religiosa, dividiu a sociedade em duas classes distintas. Quando o socialismo o denunciou, o liberalismo, temeroso e mediocre, entregou-se nas mãos da barbárie nazi-facista, que é na realidade sua mais radical negação. A liberdade sem a igualdade acaba caindo no totalitarismo de direita.

O socialismo, o sonho mais belo da modernidade, ao querer corrigir os defeitos do sonho liberal, enfrentando-o, renunciou à liberdade, e com isso, caiu no pesadelo estalinista. O socialismo é um sonho de igualdade, de cooperação e de realização de todos em uma sociedade reconciliada e sem classes. Quando, porém, a igualdade se constrói prescindindo da liberdade, acaba caindo no totalitarismo de esquerda, que é simples e plenamente a negação do socialismo.

Entretanto, estas duas utopias sociais não deram só o estéril fruto totalitário. Da síntese ou do equilíbrio entre ambas surgiu a democracia. Esta seria o fruto mais fecundo das utopias sociais da modernidade. Cada uma em separado traz o terror, mas misturadas trouxeram uma democracia que, em princípio, diz garantir os direitos humanos -direitos cívicos e políticos, direitos econômicos, sociais e culturais- melhor que nenhum outro sistema. Assim, o advento da democracia, no século XX, deveria ser mais bem visto como o triunfo das utopias sociais, e não de seu fracasso. No entanto, nós nos atreveríamos a dizer que a democracia é efetivamen-te a realização do sonho iluminista? Parece que não.

Contradição entre capitalismo e democracia

Mais que de democracia, talvez se devesse falar de democratização. De qualquer maneira, muito longe está a atual democracia de satisfazer os ideais iluministas. Por quê? A resposta é simples: a democracia compar-tilha o terreno do jogo com o capitalismo. Este é a negação dos ideais iluministas. E está ganhando.

A democracia e o capitalismo são incompatíveis porque este é uma maneira não democrática de organizar a economia. O capitalismo não organiza a produção e a distribuição da riqueza com base no direito da cidada-nia, senão no de propriedade. Os pobres só deixam de ser pobres sempre que isso faça os ricos mais ricos. Talvez o capitalismo possa ter êxito na erradicação da pobreza absoluta, porém, apenas pode consegui-lo na erradicação da pobreza relativa, porque sempre tenderá a incrementar as diferenças sociais, se não vier alguém e o remedeie.

Esse alguém veio, já o sabemos. Foi o Estado. O estado do bem-estar, de fora, tentou corrigir a desigual-dade inerente ao capitalismo. Foi o instrumento da democracia para tentar cumprir suas promessas de jus-tiça. Com seu equilíbrio entre estado e mercado repre-sentava um certo empate entre estes dois contrá-rios que são a democracia e o capitalismo. O campo de jogo estava dividido e ninguém ganhou.

O modelo funcionou enquanto democracia e capitalismo estavam em escala nacional. Com o fim da guerra fria e a revolução tecnológica, o capitalismo tornou-se global, porém as democracias seguem sendo nacionais. Esta desproporção desfez o empate: uma pluralidade de estados-nação não podem corrigir a desigualdade que gera um único capitalismo global. Esta mudança de milênio realizou uma utopia: não o da democracia universal, mas do mundo organizado como mercado.

Razão e ídolos

Por que isto sucedeu? Recorramos, um momento, ao velho Kant. Ele dividia a pessoa em duas partes: de um lado a razão, de outro as paixões e interesses. A democracia seria, digamos, o projeto da razão, essa razão que os frankfurtianos chamaram logo de “razão emancipatória” : um projeto de justiça e liberdade universais. O capitalismo seria o projeto das paixões e interesses, que põem a “razão instrumental” a seu serviço: um projeto de domínio e de poder.

Como fazer para que a razão passe à frente das paixões e interesses? Como conseguir que seja a “razão emancipatória” a que organize a terra, e não a “razão instrumental”? De que maneira poderia a razão da justiça sobrepor-se à força do poder? Kant e a modernidade respondem: a justiça se fará em nome da razão, isto é, a razão por si mesma se impõe, se quisermos que os humanos sejam verdadeiramente tais. Mas quando os homens preferirem renunciar a sua humanidade? Porque é isto que vemos a cada instante.

A justiça exige respeito aos direitos do outro, mais que à própria. O sacrifício em favor dos direitos dos fracos: este é o sentido mais profundo da democracia. Porém, os fracos não devolvem nada em troca. A justiça, portanto, é feita em troca de nada. Onde achar energia para um ato sem nenhuma compensação?

A razão não tem uma energia própria. As paixões e os interesses, sim. Por isso, a justiça, quando se fundamenta exclusivamente na razão, acaba derrotada.

A razão não tem uma energia própria porque não tem resposta diante dos limites da vida. A razão não pode dizer porque há vida, por que existe o ser e não mais o nada. Não sabe o que dizer diante do ato evidente da morte. Diante deste vazio, as paixões e os interesses levantam ídolos: poder, riqueza, técnica, fama, prazer… Os ídolos são meios que se absolutizam e se convertem em fins. Proclamam falsas promessas de plenitude: fazem-nos crer que nos farão felizes, que encherão o vazio que põem a morte diante de nós. Por isto, para alcançar a felicidade, os mais fortes sacrificam em seu altar os mais frágeis. Convertem os humanos, que são os únicos fins verdadeiros, em meios de uns meios que se convertem em falsos fins.

Força de elevação

Contudo, na hora da verdade, os ídolos nunca nos satisfazem: não nos fazem felizes. O que se consegue é uma ilusão. É esta atração que faz sucumbir a razão, que, para se impor necessita de uma força de elevação, distinta de si mesma, que lhe permita resistir à gravidade das paixões e dos interesses. Esta força tem que dar algum tipo de resposta à questão dos limites da vida, ao enigma da morte. Desta força nos falou constantemente a história da humanidade, desde as mais ancestrais culturas e tradições espirituais até nossos dias. O nome que lhe deu a tradição cristã é o amor ou a caridade.

A força do amor é a força da fragilidade. É a força de que necessita a razão para cumprir seus projetos e suas promessas: o amor é o único espírito onde pode repousar a justiça. O nome político do amor é “fraternidade”. Entretanto, dir-se-ia que, não pode haver fraternidade sem certo sentido da filiação. As tradições religiosas -talvez a cristã a mais explícita entre elas- nos explicariam , aqui, que é preciso sentir-nos amados como filhos para podermos nos amarmos como irmãos.

O mundo religioso cometeu um grave erro, imperdoá-vel, de não compreender que a caridade tinha, acima de tudo, uma dimensão social e política. Porém, o Ilumi-nis-mo cometeu o erro contrário: quis confiar totalmente a justiça à força inexistente da razão, por isto fracassou. Por esse motivo, a democracia, ao basear-se exclusiva-mente em uma razão que se acreditou auto-suficiente, caiu sob o peso do capitalismo. Por isso a utopia reali-zada pela modernidade não foi a utopia da democracia universal, senão a utopia capitalista dos interesses e das paixões. Um mundo onde ganha sempre o mais forte, ou o mais esperto.

Do trilema iluminista, a razão apela à democracia, à liberdade e à igualdade. O amor -politicamente compre-endido- apela à fraternidade. Assim, o que queremos dizer é isto: que não se pode construir a democracia a não ser baseada na fraternidade. A cidade justa de livres e iguais só será realidade, quando a liberdade e a igual-dade se fundamentarem na fraternidade. A terceira pala-vra do trilema encerra o segredo, ou melhor, o espírito que há de tornar possíveis as outras duas. Se os filhos do Iluminismo não recuperarem a caridade, nunca poderão cumprir as promessas iluministas.

Em nome da fraternidade, pois, recuperamos o direito às utopias sociais que o fim da história nos havia arrebatado. Em seu nome, podemos reencontrar o caminho adequado para que a democracia derrote o capitalismo. Talvez o capitalismo tenha sido mais forte, efetivamente, que as utopias sociais da modernidade. Porém, a caridade é especialista em voltar a reabrir a história, em fazer que recomece sempre. Trata-se de retomar a fraternidade como princípio básico para organizar o mundo. Nestes tempos finais da história, é-nos um pouco estranho que a fraternidade nos devolva o direito -e, de fato, nos exija o dever- de voltar a falar de utopias.

 

Antonio COMÍN

Barcelona, Espanha