Diferentes opções espirituais em busca do sentido

Diferentes opções espirituais em busca do sentido

Faustino Teixeira


Esse início de século XXI vem pontuado por muitas incertezas, dificuldades e intransparência. O grande historiador britânico, Eric Hobsbawm, em passagem de sua obra Tempos interessantes (2002), assinala que o século XXI, na esteira sombria do século anterior, um dos mais violentos registrados na história, não aponta mudanças substantivas, pois se inicia “com crepúsculo e obscuridade”. São tempos difíceis, com catástrofes humanas e naturais impressionantes. Tudo isso gera muita desorientação, incerteza, insegurança, angústia e depressão. Com base nas previsões da Organização Mundial da Saúde (OMS), a segunda causa de morbidade do mundo industrializado até 2020 será a depressão. É um diagnóstico sombrio sobre o “mal-estar” que acompanha a dinâmica de nosso tempo, expressão também de um “empobrecimento da vida interior”.

É difícil para o ser humano viver em um estado de tal insegurança ou incerteza. Não há como conviver em um mundo social sem ordenação e significado, pois a exigência humana de sentido é um dado antropológico essencial. Assim, verificamos nesse tempo de opacidades a afirmação e o crescimento de caminhos espirituais diversificados, como mecanismos essenciais de construção de teias de sentido em um mundo fragmentado. Falamos aqui de opções espirituais, e não só de religião, para ampliar o leque e alargar os horizontes das respostas encontradas pelos seres humanos para enfrentar as ameaças de um mundo fragilizado e desencantado.

Não há dúvida de que as religiões ocupam um papel singular – enquanto poderosos sistemas de símbolos elaborados pelos seres humanos – na ordenação da realidade e na afirmação do sentido. Exercem também um papel essencial na integração das experiências marginais ou limites, envolvendo as experiências dolorosas em um quadro cósmico de referência. Elas funcionam como um “dossel sagrado”, ou seja, um âmbito protetor contra as dificuldades e ameaças da vida. Ocupam um papel importante na interpretação das situações dolorosas, ajudando as pessoas a enfrentar a dor. Os sociólogos e antropólogos, como Peter Berger e Clifford Geertz, sinalizam que a religião ajuda a “localizar” o sofrimento e a morte, tornando mais suportáveis os paradoxos da dor humana. Ela não elimina nem se propõe a eliminar a perplexidade, o mal ou o sofrimento, mas busca situá-los em um quadro referencial de sentido, que produz alívio e segurança. Em situações de grande sofrimento, nada mais essencial do que encontrar um significado. Isso é tão fundamental quanto a necessidade de felicidade.

A religião entra em cena para garantir o código interpretativo das complexas e difíceis situações que marcam a caminhada cotidiana dos seres humanos. Ela torna possível enfrentar e tolerar a dor. Daí sua importância tão decisiva nos meios populares, que não conseguem entender o mundo senão através da porta de entrada da religião. O singular personagem Riobaldo, de Guimarães Rosa, na clássica obra Grande sertão: veredas (1967), expressa bem esse sentimento:

Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral, isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim, é pouca, talvez não me chegue (...). Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.

Analisando os espaços referenciais da sociedade brasileira, o antropólogo Roberto daMatta identificou três campos relacionais: a casa, a rua e o outro mundo. Na casa, o nosso universo mais próximo, é onde moramos e vivemos. Nela predominam as relações de parentesco, amizade e gratuidade. A rua é o espaço onde trabalhamos e enfrentamos a árdua luta pela vida; é o espaço regido pelas leis do mercado. Mas há também outro universo relacional, que é o do outro mundo, demarcado por igrejas, ermidas, oratórios, terreiros, sinagogas, mesquitas, cemitérios etc. É um espaço pontuado pela dinâmica da eternidade e da relatividade, preenchido por mortos, espíritos, anjos, santos, orixás, deuses e demônios. Trata-se de um mundo de proteção onde “tudo pode encontrar e fazer sentido”. É um mundo de esperanças e utopias, que pode abrir portas e janelas para realizações que não encontram lugar na implacável dinâmica das leis do mercado. É um mundo onde se firma a possibilidade de compensações não realizadas no âmbito da casa e da rua, e também de resgate de um sentido oculto, capaz de ordenar a vida e a relação com as coisas da vida. Tudo é possível na relação com o outro mundo. Como diz Roberto daMatta, na linguagem religiosa, tecida por preces, rezas, súplicas e promessas, permite-se a “um povo, destituído de tudo, que não consegue comunicar-se com seus representantes legais, falar, ser ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo”.

No âmbito das pesquisas realizadas nas ciências sociais, verifica-se que as experiências religiosas em curso nos meios populares têm suscitado uma importante função de tessitura social. Temos no Brasil os exemplos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), das religiões pentecostais e afro-brasileiras, que apontam para uma dinâmica singular de reconstrução de um novo significado vital e a intensificação da qualidade do “ser sujeito” ou “ser comunidade”. Estudos antropológicos realizados com segmentos pentecostais revelam uma experiência inaugural de “geração de laços de confiança e fidelidade pelos quais circulam benefícios materiais e afetivos, por meio de ajuda mútua, informações (ou recomendações) de emprego ou acesso a políticas públicas, além da geração de autoestima e trocas matrimoniais que tendem a sobrepor relações religiosas a redes de parentesco” (Ronaldo de Almeida).

Constata-se hoje no Brasil que são os evangélicos que vivem da maneira mais radical a opção pelos pobres, atingindo os rincões mais afastados e isolados da sociedade, respondendo de forma efetiva aos clamores dos mais desassistidos e promovendo dinâmicas agregadoras inusitadas. São laços matrimoniais reconstruídos, são pessoas que se encontravam no “fundo do poço” e redescobrem nova vontade de viver e o brilho nos olhos para retomar o seu cotidiano. Pessoas que antes estavam paralisadas pelo medo, pela dor e pelo caos, e encontram nos cultos um novo ânimo para levar a vida. É o que Émile Durkheim identificou como a força dinamogênica da religião, que ajuda a viver, ou seja, a enfrentar e superar as dificuldades.

Essa energia vital e espiritual entre os pentecostais brasileiros foi objeto de análise de Richard Shaull, um dos pais da teologia da libertação. Juntamente com o sociólogo Waldo César, ele buscou identificar alguns aspectos que escapam às tradicionais análises realizadas sobre o tema, em especial o toque da experiência espiritual que anima os pobres pentecostais em sua jornada de fé. É um desafio entender o que ocorre com numerosos pobres do Brasil, que, em situação de extrema precariedade, “passam a conhecer um rica experiência, que não podemos imaginar, de cura e presença salvadora de Deus”. E a partir daí começam a reconstrução de suas vidas. Nessa dinâmica espiritual processa-se uma “transfiguração e inversão da vida cotidiana”: os últimos do mundo passam a considerar-se os “primeiros do Senhor”, os “escolhidos de Deus”. Isso também ocorre em outras experiências religiosas, nas quais os fiéis tomam consciência de que podem mais. A experiência de alegria, paz interior, serenidade e entusiasmo de viver, vivenciada nos cultos, suscita um ânimo novo e aciona energias inusitadas para a ação histórica. Também nos cultos afro-brasileiros, os fiéis cedem seu corpo para a dança dos deuses, e o resultado é renovador para a vida:

Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas: eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de alga. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e misérias (Roger Bastide).

Os estudiosos da religião são desafiados a ampliar seu olhar para poder captar a complexidade que envolve essas experiências religiosas, cheias de vitalidade que acontecem no âmbito das várias tradições, como a católica, a evangélica e a afro-brasileira. Há também que reconhecer ainda a presença de outras malhas que se inserem nesse fenômeno de “retorno do sagrado”, marcado por extraordinária plasticidade: de novas alternativas de conversão, de afiliação religiosa e múltipla pertença. Trata-se do desafio de levar a sério o dinamismo da experiência religiosa com suas surpreendentes facetas. Não se quer com isso ocultar a ambiguidade que permeia toda religião histórica e concreta. Nelas também estão em jogo artimanhas de poder que são problemáticas. Quando, porém, o olhar se volta para a experiência miúda do fiel, a autenticidade de sua dinâmica de fé, a análise não pode abafar ou desconsiderar uma riqueza que é impressionante. Há um “fervor instituinte” que escapa a qualquer possibilidade de domesticação ou enquadramento institucional.

Não apenas as religiões são produtoras de sentido no nosso tempo. Temos opções espirituais significativas, não religiosas, que são igualmente muito importantes. Há que ampliar os horizontes para captar as energias espirituais que envolvem experiências de humanização. A espiritualidade não se restringe ao domínio do especificamente religioso. Como vem mostrando Dalai Lama em suas obras, a espiritualidade tem a ver, sobretudo, com “qualidades do espírito humano”, como a capacidade de amor, compaixão, hospitalidade, cortesia e delicadeza. Não só os religiosos estão instrumentados para atuar essas qualidades, mas elas podem ser desenvolvidas, até mesmo em alto grau, por pessoas ou comunidades não religiosas. Daí a importância de se falar em “opções espirituais” diferenciadas na busca pelo sentido.

 

Faustino Teixeira

fteixeira-dialogos.blogspot.com / Juiz de Fora, MG, Brasil