Deus: Buraco ou tapa-buracos

Deus: Buraco ou tapa-buracos

Pere Torras


“Nunca ninguém viu Deus.” Se é assim, podemos falar de “Deus”? Imaginemos a seguinte história:

Era uma vez, algumas pessoas que tinham nascido e vivido sempre em um grande espaço, fechado por todos os lados como uma imensa bola e onde tinham todo o necessário para viver e desenvolver-se. Não havia portas nem entrava lá nenhuma luz. Por isso aquelas pessoas davam como certo que seu mundo era o MUNDO TODO. Não tinham desenvolvido o sentido da vista, mas, sim, os demais sentidos.

Um dia, um deles alcançou a parede limite daquele espaço, e tocou em alguma coisa como uma pequena janela que podia ser aberta. Avisou todo o grupo, dizendo: Toquem aqui! Não há nada! Alguns, encompridando o braço, concordaram que realmente não tocavam em nada. Alguém disse: Isto é um buraco, um vazio na parede, e pode ser perigoso. É melhor deixá-lo como está. Outros, porém, pensavam que talvez aquele vazio pudesse ser como uma saída. Talvez existisse um “exterior”; talvez seu mundo não fosse o único que havia…

A janela ficou entreaberta e agora entrava luz. Por isso, depois de muito tempo, alguns começaram a desenvolver o sentido da visão: viam uma espécie de “mancha luminosa e confusa” no meio da escuridão geral, e conversavam a respeito.

Outros chamavam simplesmente de alucinações aquilo que podiam ver mais ou menos.

Com o passar do tempo alguns passaram a perceber melhor aquela luz, viam a forma que tinha, mas não sabiam se o que podiam ver, mas não tocar, era parte da parede limite ou vinha de fora, se é que existia “fora”.

Será que existia um mundo exterior? – perguntavam-se alguns.

Isso é impossível! Tudo o que é real se pode tocar.

Talvez o mundo de verdade esteja lá fora, e nós não disponhamos do sentido adequado para percebê-lo – diziam outros.

Aquele “vazio” foi motivo para muitas discussões e também brigas e divisões. Muitos lamentavam e denunciavam o grande “engano” gerado por quatro iluminados. Diziam: Já temos bastantes problemas aqui para nos preocupar sobre se existem ou não outros mundos. Mas outros diziam: Vocês não percebem? Talvez este nosso mundo não seja mais que uma prisão. Se existisse um mundo “exterior”, tudo ficaria diferente para nós! Alguns queriam fechar o maldito buraco, outros queriam mantê-lo aberto, outros, ainda, fazer novos buracos…

Passado mais algum tempo, alguns descobriram que quando alguém passava por perto daquele “buraco” podia vê-lo. Eles e os objetos, quando passavam perto daquilo a que chamavam de “luz” de alguma maneira também se tornavam “luminosos”. Não sabiam que era a “luz”, mas a “luz” lhes permitia se verem e verem as coisas.

Os poderosos dentre eles quiseram tornar-se donos daquele buraco e, inclusive, queriam obrigar todos a passar ali por diante para controlá-los melhor.

Quantos problemas provocou aquele “buraco”! Mas também, segundo alguns, quantas possibilidades!

Não sabemos como acabou a história. Você, leitor, pode imaginar seu final ou seu processo sem final.

***

“Deus”: O que queremos dizer com esta palavra?

A palavra “Deus” poderia ser o nome que damos ao “buraco” que experimentamos em nossas vidas. Por pouco que pensemos nisso, experimentamos que nossa vida está esburacada. Do nosso lado, o percebemos como um vazio, embora não saibamos se está cheio de alguma realidadeque não podemos captar.

Não sei se existo porque experimento diretamente minha existência. Mas essa experiência tem duas faces: eu me sinto existindo, mas me dou conta de que poderia não existir. Existo, mas não sou causa de mim mesmo. Sinto-me um ser, mas não um ser absoluto. Como o pássaro que voa, sinto-me pairando na existência, mas ao mesmo tempo sinto que não me sustento por mim mesmo. Sou sustentado? Por pouco sincero que seja comigo mesmo, sinto que minha existência está relacionada à OUTRA REALIDADE que me serve de suporte. Sou como a luz de uma lâmpada elétrica: existe, mas deixaria de existir se a desconectarmos.

O que é esta OUTRA REALIDADE?

Não sei. Somente a sinto como um buraco em minha existência. E é precisamente este oco que sinto em mim que me permite não me sentir pesado, maciço, opaco, sozinho… É como uma janela que me livra de ficar fechado em mim mesmo. É sentir que o centro de mim mesmo está fora de mim, como nos namorados. Estar enamorado: sentir que o centro da própria vida está na pessoa amada, fora de si mesmo. Então a própria vida torna-se comunhão, diálogo, relação…

De fato, cada pessoa que se faz presente em nossa vida, se a aceitarmos e nos “abrirmos” a ela, cria em nós como que um “vazio” que nos permite acolhê-la. E aqui está o início de tudo: na PRESENÇA DO OUTRO.

Como me situo ante a presença do outro? Se me situo com um coração aberto e acolhedor, é como um buraco em minha vida, e esta se torna prolongada, dialogante, comunicativa… Também se faz criativa: crio a mim mesmo como um tu ante o outro, e ajudo o outro a criar-se como um tu diante de mim. Em troca, se ante o outro me situo com um coração fechado, minha vida se mantém opaca, e a presença do outro gera em mim um desejo de dominá-lo ou de utilizá-lo ou de incorporá-lo a meu mundo ou, se não, de excluí-lo de todo.

Jean Paul Sartre dizia que “os outros são o Inferno”, que sua liberdade marca o limite da nossa. Mas é exatamente o contrário: não posso ser livre sem a presença do outro ou dos outros. É sua presença que cria em mim um “buraco”, um “espaço livre” onde pode nascer minha liberdade.

Sartre “demonstrava” a não existência de Deus, dizendo que, se Deus existisse, sua Liberdade seria tão absoluta que ninguém mais poderia ser livre. Segundo ele, nossas pequenas liberdades “demonstram” que não existe nenhuma Liberdade Absoluta. Sartre era coerente em sua maneira de pensar. Era-o também quando deduzia disso a radical solidão de todo ser humano.

Mas esse raciocínio contradiz nossa experiência mais direta. Vivemos convivendo. Os outros são nosso horizonte de possibilidade. Nossa liberdade não acaba onde começa a dos outros. Ao contrário: somente a presença dos outros pode nos oferecer um espaço para a liberdade, para “existir” (ex-sistere), para “con-viver”.

Pode-se passar dos outros ao OUTRO (Deus)? Racionalmente, não; porque sentimos os outros, mas não sentimos o OUTRO. Em troca, existencialmente, na medida em que entramos em uma situação de diálogo e de comunhão com os outros e com o mundo, intuímos que a “existência esburacada” não é uma peculiaridade exclusiva de cada um de nós. Quando viajamos de avião, se alguém tiver medo de que ele caia, de nada lhe servirá agarrar-se fortemente ao assento, porque o perigo, em todo caso, é de todo o conjunto que paira no ar. Assim também nós, na medida em que estivermos conscientes de formar um só mundo, nos daremos conta de que é todo o conjunto que o está formando. É todo nosso mundo que se sustenta na existência apesar de não se sustentar por si mesmo. Assim, pois, somos sustentados, não obstante nossa incapacidade de conhecer quem nos sustenta. Existencialmente, a abertura para os outros nos leva ao OUTRO, desconhecido.

É possível estarmos abertos aos outros e não irmos ao encontro do OUTRO? Racionalmente, sim. É possível respeitar os outros, e inclusive dar por eles a vida, sem falar de “Deus” e negando todo o conteúdo real desta palavra. Contudo, existencialmente, a autêntica abertura aos outros vai sempre mais além de sua realidade concreta. Respeitar realmente os outros inclui a atitude de respeitá-los mesmo que fossem diferentes do que são. Na realidade concreta de cada outro, respeitamos todos os demais. Em cada outro concreto, respeitamos o OUTRO, desconhecido.

Mas também é possível que alguém diga que “crê em Deus” sem estar realmente aberto aos outros. Isto significaria ter ele feito um “Deus” para sua medida, a fim de legitimar ou dissimilar seu fechamento.

Seria um “ídolo”. Na linguagem de nossa pequena história seria um Deus “tapa-buracos”.

Quando uma pessoa diz: “Não creio em Deus”, sinto ternura por ela, porque imagino como sua vida deve ser pesada e opaca. E gostaria de poder lhe dizer: “Pois, eu creio em Deus”, sim, e o sinto como um “vazio” dentro de mim que me permite ser leve, transparente, aberto, livre, dialogante…

É possível que o companheiro ateu responda que também ele se sente leve, transparente, aberto, livre, dialogante… Então, eu saberia que ambos estamos fazendo uma experiência muito parecida, apesar da palavra “Deus”. A dele a exclui como ídolo “tapa-buracos”, e eu a experimento, a acolho e me alegro com ela como “buraco” em minha existência. “Deus” é uma palavra de conteúdo variável. Segundo a linguagem e a atitude profunda de cada um. Se torna sábio o mandamento: Não tomarás o nome de Deus em vão!

 

Pere Torras

Sant Feliu de Guíxols, Catalunha, Espanha