Desafios da Causa Negra no século XXI

Desafios da Causa Negra no século XXI

Belo Horizonte, MG


Na América Latina já se começa a entoar um canto que é fruto de mais de 500 anos de resistência e luta das comunidades negras: o de desnaturalizar para sempre as teorias que pregam a inferioridade racial e as desigualdades sociais e raciais.

Essas teorias, difundidas no passado e que legitimavam o sistema escravista em todos os nossos países, ainda, dois séculos depois de oficialmente abolido esse sistema, se manifestam de formas ora sutis, ora brutais em todos os países, especialmente naqueles em que a população negra representa uma parcela significativa da população nacional.

Existem fatores estruturais determinantes das condições de vida das populações negras na América Latina, pois, embora o seu tamanho e posição social variem de forma considerável entre um país e outro, têm traços comuns em todo o continente. A população negra tem situação desfavorável no mercado de trabalho, é mais atingida pelo vírus HIV, tem menos acesso às universidades e à qualificação profissional e detém as maiores taxas de analfabetismo. A mortalidade infantil e materna é muito maior entre os negros, assim como o número de negros mortos por doenças e homicídios: o dobro em relação à população branca.

Existe uma ameaça permanente de destruição da cultura negra e de suas manifestações religiosas, assim como de sua expulsão dos lugares de moradia e sustento, os quilombos, negando-lhes o direito à vida. Em todo o continente, apesar das peculiaridades inerentes a cada região, há uma violência declarada, especialmente contra a mulher e a juventude negra, como a negar a toda essa população o fortalecimento de sua identidade étnica. A luta por essa identidade passa pela defesa de direitos e a denúncia da naturalização do racismo na sua formulação ideológica contemporânea.

A naturalização do racismo se manifesta quando as condições de discriminação, construídas historicamente são consideradas “coisas do passado”. Isso conduz a um fatalismo, que traz em si a omissão e a apatia, a pseudo paciência ou conformação: “sempre foi assim, vai continuar assim”, que nega às pessoas negras a construção de projetos de vida como homens e mulheres iguais. Esta naturalização é um fenômeno que contribui ainda para sepultar valores como o multiculturalismo e o sentido de humanidade que são fundamentais no mundo civilizado.

Existem dois setores básicos da sociedade nos quais o processo de desnaturalização tem que ser enfrentado com coragem e ousadia: o mundo do trabalho e o mundo da educação. A construção da cidadania passa necessariamente pela garantia do direito ao trabalho e a oportunidade de acesso a um sistema educacional de qualidade, que se constituem em um caminho para o direito à vida.

Neste contexto é que se localiza a fértil discussão sobre os desafios da Causa Negra no século XXI. Principalmente quando se fala em democracia racial e se esconde, de forma cínica, a prática do racismo, transformando-o em uma situação socialmente invisível, que contribui para perpetuar as grandes desigualdades sócioeconômicas entre brancos e não brancos.

Um relevante e estratégico desafio da população negra do continente é reconhecer-se como ser humano e afirmar-se como tal. A condição humana é o que nos torna iguais em direitos. Direitos esses que devem ser assumidos como conquistas históricas e coletivas da nossa e das futuras gerações.

Condição necessária para se alcançar esse direito é aprofundar o debate sobre a questão da mulher negra em sua dimensão específica, interconectando raça, gênero e classe social, como forma de combater os estereótipos, a marginalização e a violência histórica que, especificamente, a mulher negra latino-americana tem enfrentado e continua enfrentando. Aceitar esse debate significa agendar, no contexto das políticas da área da saúde, as doenças com maior incidência étnico-raciais; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho; e combater as práticas, que ainda hoje imperam, de violência doméstica e sexual contra as mulheres negras.

Uma segunda agenda é organizar-se para defender a nossa juventude e nossas crenças religiosas contra a barbárie contemporânea da chamada «faxina étnica» e do fundamentalismo religioso, o qual não respeita diferentes crenças e procura destruir as tradições de matriz africana. Na defesa da juventude é necessário denunciar e combater o processo silencioso de extermínio da juventude negra do continente, contra a consagração da impunidade e a falta de implementação de políticas efetivas de inclusão social. São atitudes que o povo negro e o não negro precisam assumir, em busca de uma sociedade mais justa e mais igualitária.

Neste aspecto, a vitimização da juventude negra do continente aparece como uma constante. Isto é corroborado pelo Ministério de Justiça do Brasil quando, em fevereiro de 2011, divulgou o «Mapa da Violência 2011» onde se constata que, de cada três pessoas assassinadas, duas têm a pele preta. Em 2002, foram assassinados 46% mais negros do que brancos. Em 2008, a porcentagem atingiu 103%. E se extrairmos dados mais recentes, provavelmente veremos que eles vaticinam que a situação piorou ainda mais.

Paralelamente a esta situação, as carências alimentares, educacionais e de qualificação e de ocupação produtiva geram uma máquina, devoradora de perspectivas, que fazem lotar os sistemas prisionais. A grande maioria da população carcerária de nossos países é constituída de negros, de jovens negros. Nega-se assim a essa juventude a construção de projetos de vida. Os sonhos de futuro se interrompem.

É importante enfatizar que, por outro lado, as políticas públicas são direcionadas e elitistas, não visando à proteção do cidadão pobre e negro e muito menos realizar uma ação social de promoção de respeito e de dignidade humana. Os serviços de segurança pública são treinados, capacitados para perseguir, humilhar e «caçar» os negros, segregando-os, em verdadeiros «apartheid’s», por bairros e regiões.

Nesse sentido, torna-se urgente incrementar políticas que se traduzam em programas e projetos pragmáticos de fortalecimento do princípio étnico da coletividade, de incorporar a identidade coletiva como mecanismo de consolidação dos direitos grupais que reafirmam uma herança sóciocultural. É necessário fortalecer ações afirmativas, como instrumentos de inclusão social, ao assegurarem diversidade, pluralidade e o enfrentamento do preconceito e da discriminação.

Isto significa o respeito ao direito à vida para a juventude negra, o direito à terra dos quilombolas e seus descendentes, o direito à alimentação adequada, à moradia de qualidade; o direito a não ser submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante, assim como o direito de acesso aos sistemas básicos de saúde e às novas tecnologias de informação e comunicação.

O estágio atual do capitalismo contemporâneo nos impõe outro grande desafio que é o de lutar contra o racismo institucionalizado, aquele que se esconde no discurso de que a discriminação não é racial e sim social, esquecendo-se de que a grande maioria dos miseráveis latino-americanos, ou são negros ou são indígenas. E que a herança da escravidão ainda tem raízes profundas em nossa estrutura social e econômica, além de determinar a hierarquia de poder que se configura em nossa sociedade, com suas novas formas de exploração e de marginalização. E que, ainda hoje, a cor da pele determina um lugar na sociedade, por mais que tenhamos avançado e conquistado direitos.

O desafio atual ganha uma dimensão maior se constatarmos que estamos ante um dilema: somos exterminados e absorvidos por um racismo institucionalizado ou avançamos na afirmação de nossos direitos como seres humanos iguais, quebrando correntes que negam o espaço da moradia, da produção do sustento, do conhecimento, da convivência, enfim que tentam sepultar a herança sóciocultural do povo negro e seu direito a viver.

Os desafios do século XXI são os que correspondem à superação da escuridão, do abandono, do sofrimento, da exploração, aos mecanismos que tentam, na contemporaneidade, negar às comunidades remanescentes dos escravos, o direito à terra, à moradia. É sempre bom lembrar que o sistema escravista nas Américas contabilizou cerca de 15 milhões de africanos, homens e mulheres, arrancados de suas terras. Isto marcou profundamente, tanto o continente africano como o americano. A construção da identidade étnica desses povos possibilita a luta pela titulação de terras ocupadas historicamente por essas comunidades, hoje ameaçadas pelo agronegócio, pelo mercado de terras dos grandes produtores rurais, pelas multinacionais, pelos empreendimentos imobiliários de grandes construtoras e pela morosidade dos governos em reconhecer-lhes os direitos legais.

O caminho é assim, ousar negar o desânimo. Ousar negar o medo. Ousar negar a naturalização: eis o desafio!

«Os quilombos foram comunidades formadas por negros que fugiam da escravidão e após a abolição, em terras devolutas, como forma de sobrevivência e auto sustento. Essas comunidades, hoje habitadas por seus descendentes, permaneceram nesses locais e representam uma forma de preservação de valores e costumes que constituem parte importante da formação cultural brasileira».

Jorge Enrique Mendoza Posada

Belo Horizonte, MG