Comercio Justo e estratégias de mainstreaming

‘O Imperador não tem quem lhe venda roupa adequada’
Comercio Justo e estratégias de mainstreaming

Jan HARTMAN


O conhecido conto de Andersen sobre a roupa nova do imperador deixa a descoberto a estupidez e a vaidade do imperador, e também de alguns membros do seu gabinete. No que parece ser a fonte original em que Andersen se deixou inspirar(1) a trama é mais complexa, mas, em certo sentido, com detalhes mais realistas. O protagonista da narrativa, o Conde Lucanor, conta ao seu conselheiro Patrônio o seguinte: ‘um homem veio me propor uma coisa muito importante e diz que é algo que me convém muito, mas me pede que eu não diga a ninguém, ainda que mereça confiança, e insiste tanto sobre o segredo, assegurando que, se eu o revelar, meus bens e até a minha vida estarão em perigo’. Como o texto faz entender, o Conde resolveu contar a Patrônio, que, por sua vez, responde-lhe com uma história muito semelhante à de Andersen. A diferença desta consiste em que os lacaios do rei do conto de Don Juan Manuel produzem ‘uma tela que só podia ser vista por quem era filho do pai que lhe era atribuído, mas não podia ser vista por quem não o era’. Continua o relato: ‘ao rei, isto agradou muito, esperando que por este meio poderia saber quais eram os filhos dos que apareciam como seus pais e quem não era, e, deste modo, aumen-tar os seus bens, já que os mouros não herdam se não forem verdadeiramente filhos dos seus pais; dos que não têm filhos o herdeiro é o rei’.

A versão mais antiga do conto do rei nu nos pode servir de metáfora para entender a situação econômica, social e política do mundo atual. Neste conto, revela-se, todo um sistema de medos e chantagens baseado na avidez do rei que quer se enriquecer mais. É um círculo vicioso do qual nada e ninguém que faz parte deste sistema consegue escapar. No final, a estupidez e a cobi-ça do rei do conto de Don Juan Manuel são descobertas por uma pessoa que não tem nada a perder: o pajem negro do rei (personagem que no conto de Andersen se converte em criança). Muitos reconhecerão nas imagens do conto o quão fechado e onipresente é o sistema econômico de hoje. Ninguém negará que são antes de tudo excluídos do mundo os que estão em condições de desmascarar falácias do sistema econômico em que devem viver, pois são eles que sofrem na própria carne a estupidez e a cobiça dos que estão no poder. Sem dúvida, a pergunta que vem a todos nós é o que fazer para que estas análises, estas convicções e reconhecimentos se tornem algo concreto, algo com potencial para mudar o sistema, juntamente com as condições de vida miseráveis de tanta gente.

Economia solidária

Com efeito, constatamos que, tanto no norte como no sul, vêm se desenvolvendo experiências de “economias solidárias, com o denominador comum de que todas elas têm começado de modo muito minúsculo, muito precá-rio, talvez muito ligadas a situações de pobreza, inclusi-ve de pobreza extrema, e pode ser citado como exemplo concreto as “Caixas Econômicas (Cajas de Ahorro) em nível mundial. Na prática, estas experiências que começaram a sua caminhada muito timidamente, chegaram, em muitos casos, a formar um movimento muito forte, com identi-dades de relevo, sobretudo em nível local. Em países do sul a cooperação tem sido um elemento significativo, sobretudo para os mais pobres que se organizam apoiando-se mutuamente para sobre-viver na pobreza e tentar sair da mesma, com experiên-cias importantes em alguns casos de autogestão. É certo que não se pode deixar de reconhecer que muitas das experiências de economia solidária têm perdido os seus traços funda-mentais, assimiladas pelo sistema neoliberal, na medida em que “se esqueceram da escala de valores que motivou a sua criação.

Um projeto maior de economia solidária coloca-se como uma estratégia que convida o conjunto de agentes econômicos e sociais de uma localidade, uma região, país, inclusive em nível internacional, a construir uma nova economia, não só em base a “competir” para chegar a um ponto de lucro, mas para “compartilhar” os benefícios, os conhecimentos, cada vez mais eqüitativa-mente(2).

Comércio justo

De um modo especial, o comércio justo entra no que acabamos de identificar como ‘experiências de economia solidária’. Na Europa, surgiram, pelos anos de 1950 e 1960, incontáveis iniciativas nas quais se uniam produtores do sul com consumidores do norte. No começo, os produtos (entre os quais café, cacau, artesanatos, etc.) eram vendidos em barracas especiais. A elas, só ia gente consciente de que o negócio limpo ou o comércio justo era o caminho para se chegar a maior igualdade econô-mica no mundo.

“Solidariedad, agência holandesa de cooperação com a América Latina, juntamente com alguns agentes do mundo da solidariedade e em estreita comunicação com camponeses cafeicultores mexicanos, revolucionou o conceito, levando produtos adequados a grandes super-mercados. No fim do ano de 1980, o café com o selo de garantia Max Havelaar chegou a ser o produto mais adquirido pelo público em geral. No que se refere ao mercado holandês, chegaram bananas e outras frutas frescas e todas marcadas com o selo Max Havellar(3). Porém, com tudo o que o comércio justo trouxe em termos de conscientização do público e benefícios para os produtores de café e bananas, as quotas do mercado dos produtos adequados se mantiveram em níveis relativamente modestos.

Despindo o novo império?

Voltemos ao conto de Juan Manuel. Como metáfora aplicada ao mundo de hoje, a história do rei é eloqüente. Dá a entender que o sistema está fechado hermetica-mente. Não há sinais de mudanças, ainda que o rei, afinal, tenha que reconhecer a sua estupidez e cegueira e que o pajem negro tenha podido mostrar a sua capacidade de análise. Este continuará sendo servente do rei, o qual, por nu que esteja, continuará no seu sonho de se enriquecer.

Sem querer nos ater demasiadamente à letra do conto do rei nu, a ‘verdade’do conto parece se refletir nas dificuldades que enfrentam a economia solidária e o comércio justo. Alguém até poderia chegar à conclusão de que iniciativas como estas só lhes permite uma existência marginal.

Felizmente, ainda resta algo mais a contar. Nos últimos anos, o conceito de responsabilidade social da empresa vem tomando vulto, não só na Europa e nos EUA, mas também na América Latina. Ainda que o café com o selo de Max Havelaar não tenha pegado bem, o conceito da responsabilidade social do consumidor chegou a muitos agentes da sociedade. Há pouco tempo, divulgou-se a notícia de que Douwe Egberts, antiga empresa torrefadora holandesa e filha de Sarah Lee (no ranking, a terceira empresa multinacional compradora de café), resolveu comprar parte de suas importações de café através da fundação Utz Kapeh (4), uma organização sem fins comerciais que promove a produção social e ecologicamente sustentável de café. Ainda que se trate de uma porcentagem mínima, é no negócio de café um primeiro sinal de interesse da parte dos grandes competidores em respeitar certos códigos de conduta para com os produtores e o meio ambiente. E no mundo do comércio justo é cada vez mais forte a convicção de que são necessários projetos econômicos de grande escala para produzir os efeitos desejados na vida dos produtores.

O conde Lucanor

Uma última vez nos referimos ao antigo relato de Don Juan Manuel. É claro que não tem sentido ter as esperanças postas no rei nu. Contudo, vale a pena olhar para além da história do rei. O mesmo conde Lucanor, ocupado, conforme nos faz saber, decide manter a confiança no seu conselheiro e não cair na trama que lhe apresentou um vigarista. Em outras palavras, ele fica em seu juízo perfeito. No sentido de manter comunicação transparente com os seus colaboradores, de não se deixar levar cegamente pelo desejo de enriquecimento rápido, mas preocupado em conservar certa racionalidade no trato dos seus negócios, o conde Lucanor pode servir de modelo para o empresário moderno, novo aliado ao comércio justo.

Não obstante, Solidariedad continuou o seu cami-nho. Em 2001, criamos a empresa Kuyichi (5), encarrega-da de vender roupa de ‘fashion’ a jovens modernos e ‘cool’ usando a sua linguagem. Kuyichi reúne consumido-res de roupa do oeste com produtores de algodão e fabricantes do sul. Vendemos uma marca, e não somente com o selo Max Havelaart, e sem a pretensão de despir o imperador. Mas apostamos que no fim terminaremos oferecendo roupa adequada, café adequado, banana adequada e outros tantos artigos adequados ao imperador, e que não lhe restará outra opção senão comprá-los de nós.

Notas:

(1) “El Conde Lucanor, escrito por Juan Manuel, infante de Castilha e publicado pela primeira vez em 1335. Ver p/e: http://virtual-spain.com/literatura_espanola-lucanor.html

(2) Humberto ORTIZ, “Economia Solidária: o mundo em vista a uma nova civilização, no Peru, nas comunidades, Lima 2003.

(3) Sobre a história do comércio justo na Holanda se pode ler em: “Comercio justo. La historia detrás, Nico Roozen/Franz van der Hoff Amsterdan 2003. Pode-se conseguir o livro escrevendo para info@solidaridad.nl

(4) www.utzkapeh.org

(5) www.kuyichi.org (somente em Inglês).

 

Jan HARTMAN

«Solidaridad»,

Manágua, Nicarágua - Utrecht, Holanda