Carta ao presidente Bush

O fim não justifica os meios
Carta ao presidente Bush

José Ignacio GONZÁLEZ FAUS


Não sei se quando receber esta carta o senhor já terá capturado Bin Laden (BL), nem sei se já estará morto ou aparecerá um dia no Sudão ou Oklahoma. Mas isto não impede que me dirija a Vossa Senhoria, sem mais título que o da cidadania desarmada. Sou cidadão de um país que foi império durante um período de sua história. E ele mais me obriga a recordar-lhe o que todos os impérios esqueceram: o fim não justifica os meios.

Buscar e julgar a BL é um fim justo e tem Vossa Senhoria o direito e o dever de fazê-lo. Mas para conseguir esse fim não tem Vossa Senhoria o direito de bombardear de maneira selvagem todo um país como o Afganistão, e depois outros países com os quais nem sequer houve uma declaração formal de guerra. Nem causar milhares de vítimas civis, meninos e mulheres, tão inocentes como as que morreram no atentado das Torres, e que não deixam de ser vítimas injustiçadas porque são chamadas de “danos colaterais”.

Dizer depois aos meninos americanos que renunciem a um bombom ou a um jogo para dar aos afgãos, não é compaixão mas sarcasmo e propaganda barata. Como os espelhos que os soldados do império espanhol levavam para os índios na época da conquista.

Já sei que o regime talibã não quis entregar BL. Mas isto tampouco autoriza seus brutais bombardeios por duas razões: os talibãs pediram que antes se lhes apre-sentassem provas. Nisto atuaram bem, porque a justiça não pode ser feita só com suspeitas por veementes que sejam. Além do mais, um regime não é um país: os autores dos atentados de 11 de setembro estavam contra o governo dos EUA por sua convicção (que muitos outros compartilham), de que esse governo é culpado pelo que está acontecendo com os árabes. Mas isto não os autoriza a atacar a todo um país nem fazer justiça com suas próprias mãos nem ainda que o fizessem de uma forma suicida e mais arriscada que a forma covarde e cômoda de seus bombardeios. Isto foi um crime. E isto mesmo é o que Vossa Senhoria fez. Um verdadeiro ato de terrorismo imperial que o coloca à altura deles. Num mundo civilizado não é assim que se resolvem os problemas nem se exerce a justiça. A democracia é o império da Lei e Vossa Senhoria pretende substituí-la pela lei do império.

Inclusive agora, se o deficiente vídeo que Vossa Senhoria exibe é uma prova que concludente, está Vossa Senhoria obrigado a apresentá-lo diante de um tribunal internacional para que ele decida. Nem Vossa Senhoria nem ninguém pode ser ao mesmo tempo acusador, juiz e verdugo, porque esta postura contraria a separação de poderes exigida por toda democracia.

Sei que esse tribunal mundial de justiça hoje em dia não existe. Mas não me negará que é precisamente seu país quem tem mais culpa em tudo isto. Também eu considero muito provável que fosse BL o autor dos atentados. O que não converte seu vídeo em prova de conclusiva, tanto pela maneira violenta como foi obtido, porque como sabe Vossa Senhoria sabe bem, quantas informações foram silenciadas, deformadas ou censuradas nesta guerra, tornando suspeitas todas as demais informações. A célebre pergunta do direito romano: “cui bono” (a quem beneficiará isto), ainda não perdeu a vigência.

Já que Vossa Senhoria tende irresponsavelmente a tomar o santo Nome de Deus em vão, permita-me tam-bém citar Thomas Merton, célebre monge trapista norte-americano: “Quando rezo pela paz, não rezo só para que os inimigos de meu próprio país deixem de querer a guerra, mas sobretudo para que meu próprio país deixe de fazer coisas que tornem inevitáveis a guerra”.

Estes norte-americanos admiráveis são os que me permitem pensar e dizer-lhe publicamente que Vossa Senhoria agiu como um criminoso no poder, traindo os ideais originários de seu país, que baseavam precisamente no pacifismo e no diálogo a originalidade da nova nação. A célebre sentença de Lord Acton (“todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”) vale primariamente nos impérios. É o que sinto.

Aceito que minhas palavras desarmadas não têm mais autoridade que a de um cidadão particular entre 6000 milhões deste planeta. Creio não obstante que muitos cidadãos do mundo compartilham-nas.

Se tivéssemos um tribunal internacional, recorreríamos a ele contra Vossa Senhoria, mesmo que vocês rissem da sentença como já fizeram com o Tribunal de Haia. Agora quando a impotência não nos deixa mais como forma de agir além de gritos inúteis como esta carta. Mas creio que não devemos renunciar a eles: pois a moralidade, a verdade e a justiça são sempre frágeis neste mundo desumano, e desumanizado pelos impérios.

 

José Ignacio GONZÁLEZ FAUS

Barcelona, Espanha