Carta aberta a América Latina

Carta aberta a meus irmãos/irmãs da América Latina

Joan CHITTISTER


Queridos irmãos e irmãs da América do Sul:

Escrevo a vocês como cidadã do Império, que, como vocês, está tentando sobreviver em um mundo que não fizemos e que não é como gostaríamos que fosse. Eu e muitas/os como eu nos EUA nos sentimos como estranhos em terra estrangeira.

Sou uma entre muitos estadunidenses cujo coração transcende as fronteiras nacionais dos EUA e cuja alma vê a Deus trabalhando em todas as partes, em cada pessoa, em idiomas e liturgias distintas da minha.

Sou uma daquelas cuja mente sente vertigem à vista de um planeta que se fez obscenamente rico para alguns e pecaminosamente pobre para outros. Estremeço ante o pensamento de segmentos inteiros do planeta que são engolidos pela avareza das corporações internacionais, ajudadas e consentidas pelo poder dos governos que estão por trás delas. Uno-me a um e outro grupo que se debatem por deter o tanque dos EUA e vivo com a frustração de nosso fracasso.

Sofro pelas pessoas do meu país cujo sustento está sendo desapiedadamente exaurido em favor dos lucros obscenos das corporações dos EUA que acumulam benefícios arrancando-os dos bolsos das pessoas que trabalharam duro toda a sua vida para serem por fim abandonadas por seu próprio povo.

Choro, sobretudo, pelo fato de que tanta gente boa aqui, no país dos bem-intencionados, porém sonolentos gigantes, não consiga ver nada disso.

O povo dos EUA é bom, trabalhador e generoso e, desde a 2ª Guerra Mundial, vem sendo ensinado a definir-se a si mesmo messianicamente. Por outro lado, não nos ensinaram a ser autocríticos.

Depois de ter denunciado tão raivosamente a falta de respeito pela humanidade na Alemanha, tendo bloqueado a absorção da Europa em um império germânico, a pretensa assimilação da Ásia em outro império japonês, e tendo detido as pretensões da Itália fascista na África, chegamos a considerar nossos valores inalteráveis no tempo. Não chegamos a dar-nos conta de que o poder que derrotamos como força do mal na Europa, poderia ter intoxicado o sentido de nossa própria identidade coletiva e confundido nossa própria bondade e ter-nos cegado, como povo, ao mal latente em nosso próprio êxito.

Quando o povo está imbuído pela idéia de que é inequivocamente grande e bom, é impensável a autocrítica. Em conseqüência, o que propomos sobre a natureza de nosso sistema pode estar a anos luz de distância da realidade de nossas vidas.

Nos EUA, os norte-americanos dão por supostos certos absolutos como inquestionáveis. Acreditam, com a ingenuidade das crianças, que os estadunidenses nunca feriram ou causaram dano a ninguém, apesar de nossa história de segregação e de expansão territorial para o Oeste a ponto de destruir as culturas indígenas, violentar suas terras e desmoralizar seus povos.

Estão seguros em sua certeza de que os estadunidenses fizeram com que o mundo fosse melhor para todos, apesar de nossa história de exploração econômica dos recursos mundiais e da exploração da mulher e de crianças no mundo todo em trabalhos degradantes e com salários de escravidão.

Estão seguros de que a imprensa estadunidense é a única imprensa livre do mundo, apesar de ter passado anos para nos informar, como povo, de que nosso governo havia mentido para justificar a guerra do Vietnã, ou que, na melhor das hipóteses, o lançamento da segunda bomba em Nagasaki foi puramente experimental e que, - como pode saber qualquer pessoa com sentido comum, dado o fracasso dos inspetores da ONU em encontrar algo que fosse uma ameaça militar de importância no Iraque - uma informação de dez anos atrás não é informação válida em absoluto. No melhor dos casos, é uma desculpa para fazer o que já se decidiu fazer, com ou sem a informação necessária para justificar semelhante invasão de uma nação soberana.

E agora nos dizem que a razão pela qual o povo está resistindo à nossa incursão no Iraque é porque “eles” – seja quem seja o «eles» de plantão – são «diabólicos», «bárbaros» e «inimigos da liberdade».

É uma situação triste e lamentável ver-se no meio dessa situação quando se é cidadão/ã de um país do qual sempre se aprendeu que é uma das mais autênticas democracias do mundo.

Amamentaram-nos com respostas que nada têm a ver com as questões reais, já que muitas das verdadeiras questões estão fora deste país. Questionar não é nosso carisma porque ainda estamos funcionando com as antigas respostas.

A verdadeira questão é: Por que massas de gente em todo o mundo trabalham para as mesmas corporações que antes tornaram ricos os cidadãos estadunidenses, mas que eles mesmos ainda se encontram na miséria? A antiga resposta que nos temos dado a nós mesmos durante gerações é que, diferentemente de nossos e vossos imigrantes ancestrais, eles não trabalham tanto quanto nós trabalhamos.

Não conseguimos dar-nos conta de que inclusive neste país as classes de trabalho que tornaram economicamente estáveis nossos antepassados, majoritariamente analfabetas e sem formação – mineração, pequenas granjas, varredores de rua, construção de rodovias e grupos de construção em grande escala – já não existem nesta nova geração. As rodovias estão feitas, as minas estão fechadas, as granjas foram convertidas em agro-negócios e as máquinas varrem as ruas e lavam os pratos – já não o fazem as pessoas. Até mesmo os trabalhos de empacotamento deram lugar a indústrias mecanizadas. A tecnologia foi criando uma subclasse permanente e a resposta que damos aos pobres é derrubar o sistema de bem-estar e dizer-lhes que se arrumem para encontrar um trabalho em economias que nada têm para eles.

A pergunta é: Por que a metade do mundo está faminta, enquanto como nação temos o dinheiro e os meios para acabar com a fome da face da terra? A resposta que costumamos dar é que somente os EUA dão mais dinheiro em ajuda externa do que nenhuma outra nação da terra.

Contudo, dos 22 países do mundo que proporcionam maior ajuda, os EUA ocupam o último posto em ajuda exterior “per cápita, e a maior parte dessa ajuda é militar e não para a agricultura. Os cidadãos dos EUA, contudo, empenham-se em acreditar que ocupamos o número um da lista. O certo é que nós ainda não começamos a dar o que as pessoas realmente necessitam. Eis a questão: Por que estão sendo devoradas as terras indígenas em todas as partes pelas corporações, deixando abandonados os pobres em toda a terra à mercê de sua própria sorte, dormindo ao relento, sem banheiros, sob um sol escaldante, recolhendo o que os brancos não colheriam? E em uma nação que sem eles se encontraria sem os serviços servis básicos, por que o governo não lhes oferece seguro-saúde, direitos civis, e proteção legal contra abusos? Não é esta uma escravidão moderna? Não é isso um colonialismo econômico? E se isso é assim, por que o povo mais livre do mundo não o vê? A resposta que costumamos dar é que essas pessoas não se preocuparam em desenvolver os próprios recursos.

Nós nos esquecemos de que somente este país possui, monopoliza ou consome as duas terças partes dos recursos do mundo, recursos que, de outra forma, poderiam ser utilizados para o desenvolvimento de outras nações.

A questão real é: Que responsabilidade têm as elites do mundo para com pobres do mundo dos quais dependem para obter e acumular suas riquezas? A velha resposta cheira ao velho recurso de um individualismo raivoso: «Se os outros povos quiserem tornar-se realmente ricos, eles conseguirão», ou a proposta da ética protestante de trabalho: «Deus abençoa o bom», ou a arrogante segurança que nos dá um equivocado estereótipo da ignorância estrangeira.

«Nós conseguimos – indiquei um dia em uma conferência – exportar nossas indústrias, porém parece que ainda não vimos a forma de exportar nosso sistema de salários, nossos planos de pensões, nossas férias remuneradas, o nosso seguro médico». Um negociante presente na sala ficou enfurecido pela insinuação da minha crítica às práticas comerciais dos EUA no mundo. “Acaso não vivem melhor com o trabalho que lhes damos do que sem ele”, contra-atacou. «Deixe-me que lhe responda claramente – disse-lhe: Você quer que vivam melhor com nossa injustiça que sem ela?» E sua resposta foi que nós não podemos fazer mais porque “salários mais altos não seriam justos para essas pessoas naquela cultura”. Como se moradia, vestuário e calçado para as crianças não fossem próprias para qualquer cultura.

A questão é: Como pode ser que um país que defende que age sob o império da lei rechace impunemente a lei internacional, faça dos abusos aos prisioneiros uma tática militar, ensine a tortura a outras nações na tão apregoada Escola das Américas - rebatizada como «Instituto de Operações de Segurança do Hemisfério Oeste», para realizar seu intento? Como é possível que desafie assim a comunidade internacional, não aceitando reconhecer o direito de um tribunal militar internacional para julgar também os estadunidenses por crimes de guerra?

A resposta é que nós somos o suficientemente ricos, o suficientemente grandes e o suficientemente poderosos para ignorar a lei internacional. A resposta é que nós dizemos que outros povos são o «mal». Nós qualificamos a resistência não armada das nações pobres como terrorismo porque vai dirigida contra a população civil. Contudo, ao mesmo tempo, nós patrocinamos o terrorismo de Estado – com todo seu «impacto e intimidação» – que ao mesmo tempo que mata civis, danifica infraestruturas, governo e cultura de um povo por gerações e gerações.

Devemos deixar de fomentar o ódio aos guerrilheiros do povo e começar a perguntar-nos a nós mesmos o porquê as crianças dançaram nas ruas do Paquistão quando caíram as torres gêmeas de Nova York.

Devemos construir um mundo baseado na igualdade, não em nossas novas Legiões Estrangeiras. Devemos construir um mundo tal onde a frustração não seja subterfúgio para o terrorismo.

Temos que começar admitindo que ainda que o terrorismo não tenha justificação, muito freqüentemente tem uma séria explicação. Guerra justa somente pode dar-se entre nações de igual poder. O terrorismo é o que nos sobrevém quando o poderoso descarrega sua crassa e contínua injustiça sobre o débil. Acima de tudo, devemos recordar que das 24 nações bombardeadas pelos EUA, depois de 1946, nenhuma delas se desenvolveu ou manteve um sistema democrático como resultado do bombardeio. Estamos em um planeta cheio de diferenças, uma santa Torre de Babel planejada por Deus para ser consciência e companhia, apoio e sinal de verdade para cada um. Somente o respeito mútuo destas diferenças poderá trazer a paz, justiça e construir comunidade internacional. Se existe isso que se chama “guerra justa”, com os armamentos de hoje capazes de destruir a terra, somente poderia dar-se entre nações com igual poderio. Então, qual é a resposta diante do aumento deste «novo imperialismo» e à ameaça do “novo Império”? Você pode dar essa resposta. Eu também. Os governos estão atemorizados. Os ricos do meu país estão manipulando, comprando, pressionando os ricos do teu país. Portanto, somos tu e eu os que devemos fazer frente juntos.

Trata-se de um império ao qual não lhe falta coração. Porém, é um império sem perspicácia. As pessoas nos escutarão se você e eu gritarmos.

É um império ao qual não lhe falta consciência, porém sem informação mundial real. Seu povo necessita saber o que se está fazendo em seu e em nosso nome e o devem escutar de nós, cada dia, de todas as maneiras possíveis. Não devemos ter medo de falar. Somente devemos ter medo de converter-nos naquilo que odiamos.

É um império ao qual não lhe falta alma, mas que não tem a mínima idéia de que seus ideais, como a liberdade pessoal, a independência econômica, a tolerância religiosa... podem ser santos, porém a implementação dessas idéias está impelida de forma narcisista. O povo dos EUA tem que chegar a entender que o que é bom para nós não é necessariamente bom para o resto do mundo. O que queremos – «morangos no inverno e calçado barato todo o tempo» – não nos pertence necessariamente, a não ser que estejamos dispostos a pagar aos que nos fornecem estes produtos o que de fato é justo. Não temos o direito de ter o que desejamos, a não ser que estejamos dispostos a pagar o que os outros merecem.

Temos que nos unir, você e eu, e resistir, falar, dizer a verdade, partilhar nossa experiência, exigir o que nos é de direito. Devemos dizer «não» a este Imperador, evidentemente, porém – ainda mais importante que isto – devemos levar este clamor ao povo dos EUA, cujas próprias vidas estão em perigo porque seu governo tem por Deus o petróleo, por santuário o dinheiro, e por credo a religião civil dos EUA.

Finalmente, você e eu não podemos nos separar. Não devemos permitir que eles façam de nós inimigos. Junto com Jesus de Nazaré devemos fazer o caminho de Jerusalém, infundindo esperança aos mortos, dando vista aos cegos, libertando as mulheres para que proclamem a ressurreição, curando aqueles homens que foram paralisados pelo sistema e, portanto, «nunca puderam se erguer na vida».

Esta é nossa «agenda» para 2005. Esta é a única resposta ao Novo Imperialismo: Não devemos, sob nenhum pretexto, e por causa do Evangelho, por nenhuma razão do mundo, consentir em saudar este imperador, a qualquer imperador, cujo reinado desafie o Reino de Deus.

 

Joan CHITTISTER

Eire, EUA