Arte, comunicação e profecia

Arte, comunicação e profecia

Siro LÓPEZ


Precisamos dos artistas para visualizar o oculto, o passado ou futuro, o silêncio. A arte não se compreende se não for numa paleta de expressão, de comunicação e de transcendência. A arte estabelece constantes idas e vindas entre a solidão do eu e a comunhão com um tu. Por isso, tanto a arte como os artistas, cumprem várias funções. Uma delas é dar sentido a nossa existência, um viver preciso de dignidade e de gozo.

O homem e a mulher expressam a Beleza quando se realizam como tais, quando vivem a partir do que são, quando, desde sua fragilidade e sua riqueza, conseguem a realização de seus direitos, quando em suas criações reflete o respeito, a sinceridade e a justiça. Não há melhor artista do que aquele que potencializa a «saída de si» em sua relação com o outro. Comunicar-se para projetar-se. A arte, em sua função expressiva, nos reconcilia, reduz nossos medos, completa-nos, entrelaça-nos. Desta maneira, a arte se converte numa das ferramentas mais eficazes de intervenção pacífica na marcha da história. Em nosso século cada vez mais globalizado, a criação artística é uma das melhores vias para configurar uma rede de encontro, de intercâmbio, de solidariedade… Faz-se imprescindível em toda pessoa, em todo coletivo, em toda nação, para poder alimentar o respeito, a escuta, o diálogo, a interpelação.

Para levar a cabo este processo comunicativo e transformador através da arte, não podemos fazer da beleza algo excludente e elitista. Na medida em que a arte é daqueles que possuem os meios econômicos para compra e venda, a arte deixará de ser um espaço de encontro para converter-se em calçadas de prostituição midiática. É então quando a arte se converte em instrumento camuflado de poder. Temos de ser rebeldes com a escravatura de uma arte em venda e leiloado para uns poucos. A Beleza se é tal, é precisamente porque não é poder, imposição ou exigência, senão comunhão, presença gratuita e gratificante.

A arte que nasce de dentro e que sente a necessidade de perpetuar-se no comunicativo, faz-se de difícil assimilação por quem deseja silenciar a grandeza do humano. Os sistemas autoritários e as grandes estruturas dominantes tentarão servir-se de todo tipo de estratégias para driblar todo vislumbre de sensibilidade para o encontro, para o multicultural, para o marginal. Por isso quando convertemos a arte numa ferramenta publicitária em lugar de comunitária, numa questão de elite em lugar do coletivo, fazemos da beleza uma arma de alienação.

É necessária uma afinidade em nosso próprio conceito estético que nos impulsione a um compromisso humanizador; expressado de forma singela, mas em sua essência: fazer de nosso diálogo com este mundo, um espaço mais habitável. Continua a incomodar aquelas pessoas, profetas ou artistas da vida, sensíveis ao grito da selva amazônica, das baleias, dos direitos de uma infância escravizada e explorada, da igualdade das mulheres, do respeito das consciências, do reconhecimento da homossexualidade, da acolhida dos enfermos de aids, da liberdade de expressão e de busca da verdade. Segue incomodando a uns poucos a beleza de uns muitos silenciados e marginados.

Nossa preocupação pela estética não é uma questão de enfeites «bonitos» em natal, senão algo mais transcendente, que afeta toda nossa percepção da vida, da pessoa, do mundo e mesmo de Deus.

Como habitantes de uma mesma aldeia, não podemos ser indiferentes diante de um tema tão essencial como é a estética, que a envolve toda e que determina todas as nossas ações e pensamentos através de nosso olhar: um olhar limpo, transparente, brilhante, conquistador, empreendedor, respeitoso, sincero, desperto, acolhedor, contemplativo... ou, pelo contrário, um olhar superficial, triste, inquisidor, manipulador, falso, que não perdoa, que adultera a realidade e que, definitivamente, divide. Aprender a olhar, a conversar com o mundo foi a genialidade mística de São João da Cruz, de Antonio Machado, de Van Gogh, ou do atual fotógrafo Sebastião Salgado. É que a Beleza, aquela que permanece inclusive nos dias de desolação e frio, não é outra coisa que a vida vivida em plenitude, irmanada com o amor, a verdade e a justiça.

A beleza não pode ser a tal ponto para emoldurar-se numa parede, que quer pisotear ao mesmo ser humano que a contempla, àquele com quem deseja entrar em comunicação. Ao longe, será uma mera imagem escure-cida pelos vernizes de uns poucos (chamem-se burgue-ses, técnicos, autoridades, puritanos, eclesiásticos ou visionários), afanados em ocultar seu verdadeiro rosto.

Quiçá custe entendê-lo, mas a verdadeira arte reflete no coração e não na razão. Todos, ao nascer, recebemos uma capacidade para expressar-nos, por igual, que todos e todas recebemos uma mesma capacidade para amar. A arte tem de estar cheia de silêncios e não de ideologias, de escuta e não de discursos, de paixão… de muita paixão. A arte pertence ao sistema do Dom livre que transcorre ali onde não se lhe espera. A arte é o fundamento de toda comunicação, pois nos congrega na profundidade da vida. Quando algo não se pode possuir, pinta-se; quando algo não se pode beijar, faz-se melodia; quando algo não se pode falar, dança-se; quando algo não se pode ressuscitar, se faz verso.

Nossa capacidade criadora, que nos foi presenteada, tem de integrar-se em tudo aquilo que nos rodeia e em nosso próprio ser. No momento da criação artística acontece um processo de busca e de nudez, de liberdade e de respeito, de sinceridade e de perdão. Constata-se que a inspiração se dá tanto no inseto como na grande constelação, no catedrático como na mãe, no pintor como no jardineiro. A beleza o transcende e o empapa todo. Seu espírito acaricia todo vislumbre de vida. E a vida se dá, herda-se, comunica-se.

Para comunicar-nos através da arte, não é necessário apenas renovar o conceito de beleza senão também aquilo que entendemos por artista. Essas pessoas especiais beijadas pelas musas, o mesmo que ocorre com os santos, enquanto habitam aqui embaixo, são desprezadas ou odiadas e, chegada a morte, são colocadas em altares inacessíveis. Pensemos que nem santos nem artistas são modelados com outra argila. Todos e todas somos criados pelas mesmas mãos para contagiar, por gerações, o trabalho criador. Toda pessoa, pelo fato de ser pessoa, está sujeito à interrelação com o outro, a comunicar-se mediante a grande diversidade de linguagens em todos seus âmbitos (literário, musical, corporal, plástico, afetivo, lúdico, e um longo etc.) e a essas manifestações as chamamos ARTE. Atreveria-me a definir a expressão artística como a plasmação do sentimento. Talvez pode uma pessoa negar-se a si mesma a capacidade de expressar o sentido?

Neste processo, é lógico que se destaquem determinadas pessoas que, por sua sensibilidade especial ou formação artística, cativam-nos com seu poder de comunicação, de transcender o real. A estes seres de coração aberto, de pupilas dilatadas, de mãos criadoras, costumamos chamar-lhes de artistas; mas me parece importante destacar que neste labor não fica ninguém excluído, ninguém fica isolado nesta arte da vida. Nem mulheres, nem homossexuais, nem pobres, nem africanos, nem siberianos... nem sequer os meninos ou os enfermos psíquicos (Ver as obras da chamada Arte bruta). Onde ficam os risos irônicos e insultantes para toda manifestação artística que procedia de outras culturas chamadas «primitivas» e que tivemos que silenciar com certo rubor ante a descoberta e a influência em massa na arte contemporânea?

A partir de uma visão muito mais ampla, todos temos de considerar-nos artistas, não existe quem não se expresse de um modo ou outro. Criamos ao comunicar-nos, comunicamo-nos ao nos refazer de nossos sentimentos. Tanto quem, num determinado momento, plasma uma obra artística como o que a contempla em sua profundidade, são artistas.

Esse é o grande mistério da fecundação artística que, em seu desvelamento, requer a excitação de todo o ser. Ambos se precisam. A obra de arte não se consuma até que não seja contemplada. Por isso, temos que participar da vida de nosso tempo. O artista não pode esperar passivamente que o mundo, governado pelos fios dos interesses, dite-lhe. E, no entanto, também não pode viver fora da aldeia global. O mesmo que se diz dos monges, o artista não pode dançar ou pintar sem ter ao lado o jornal e seu próprio espaço de silêncio. Isso lhe situa num lugar complexo e, ao mesmo tempo, crucial. Tem que fazer parte deste movimento global, que não tem organização, que não tem nome e que, definitivamente, em mais de uma ocasião, encontra-se à deriva.

Em todo artista tem de se dar um processo de tomada da terra. São essenciais a reflexão independente e a liberdade. Precisa da liberdade para comunicar-se com o mundo, como o peixe, que, sem extraviar-se, nada por um mar cuja profundeza prescinde de caminhos marcados. A liberdade vive irmanada com a criação.

Isto faz com que o artista seja essencialmente um crítico, um interlocutor incômodo no meio do deserto neoliberal do consumo. Sem a crítica, o artista é um pseudo-servidor do intellectus em função de uma ideologia faraônica. O verdadeiro artista tem de romper essa imagem de ente perdido entre as nuvens. É um ator social que participa da composição das diferentes forças sociais, um interlocutor imprescindível.

Aqui se situa seu compromisso histórico com o homem ou a mulher atual. Perguntemo-nos, senão, por que o Guernica de Picasso é uma das obras mais representativas do século XX? Antes de tudo por seu gesto desesperado de ser escutado. Um exemplo de uma arte comunicadora, de um lenço empapado de silêncios cheios de dor. Uma arte para transcender, uma arte para comunicar.

 

Siro LÓPEZ

Madri, Espanha

www.sirolopez.com