Aprofundar a democracia

Aprofundar a democracia

François HOUTART


A democracia não é uma evidência, um feito natural. Todos os que têm sofrido tiranias o sabem. A democracia é uma construção social, uma maneira de organizar as relações coletivas, econômicas, políticas, sociais... para que nelas todos possam participar. Trata-se, pois, de um processo social, constantemente em construção. A democracia se inscreve sempre dentro das relações sociais precisas e nunca se pode falar da democracia em abstrato.

O recurso da história é interessante: é necessário saber que a democracia de que falavam Platão ou Aristóteles se aplicava à categoria dos homens livres, deixando de lado as mulheres e os escravos. Quando o Bill of Right foi proclamado nos EUA, o governador Thomas Jefferson era dono de escravos. Quando Jean-Jacques Rousseau escreveu “O contrato social”, se desenvolvia uma nova estrutura social das relações de produção cada vez mais excludente. Publicando seu “final da história”, Francis Fukuyama consagrava uma sociedade globalizada, a mais desigual de toda a história...

Hoje em dia, o mundo é unipolar. Globalizaram-se as relações sociais de desigualdade e de exclusão e forma o contexto dos mecanismos de funcionamento da democracia. Não estamos em um mercado abstrato, mas em um mercado capitalista que subtraiu a economia do conjunto social, para impor sobre ele suas normas de funcionamento, transformando tudo em mercadoria e possuindo os meios de sua globalização. A democracia socialmente construída não existe senão no interior do contexto concreto.

Enquanto os intercâmbios econômicos reais continuam sendo, em grande parte, locais, os centros de poder se concentram e a relação social fundamental é cada vez mais desigual. Exerce-se pressão para que os mecanismos joguem em favor dos mais poderosos e o peso dos grande agentes econômicos vai aumentando, já que se trata das instituições financeiras internacionais ou de empresas cada vez mais concentradas e transnacionais. No entanto, o discurso proclama que tudo o que impede o mercado é antidemocrático, por exemplo, o Estado, e em particular o Estado-Providência. O mesmo discurso afirma que a livre propriedade do capital garante a liberdade da sociedade civil.

Durante o período neoliberal, que começou no final dos anos 70, assistiu-se a uma grande queda do exercício da democracia: menos controles democráticos sobre o campo econômico e despolitização acentuada. É verdade que as ditaduras militares foram progressivamente substituídas, na América Latina e na Ásia, por democracias controladas, o que foi um progresso. No entanto, isso não aconteceu porque o mercado é, em si mesmo, portador da democracia. Na maioria dos casos, as ditaduras foram a condição mesma do protoglobalização neoliberal dos mercados, especialmente financeiros. O caso do Chile é um exemplo particularmente claro. Quando as ditaduras que haviam instaurado uma estabilidade política e social favorável aos investimentos, tornaram-se politicamente embaraçosas e moralmente insuportáveis.

Para assegurar melhor a legitimidade da economia de mercado passou-se para as democracias chamadas controladas, ou seja, incluindo condições de impunidade para os atores políticos dos regimes anteriores ou ficar sob o controle dos organismos financeiros internacionais.

Em tais circunstâncias, é o conteúdo mesmo das decisões políticas que é transformado. A globalização da economia capitalista debilita a soberania dos Estados, o que não seria um problema, se instâncias democráticas eficazes atuarem na nova dimensão. Conhece-se o exemplo da Europa que tem muita dificuldade para se construir sobre um plano que vai além do estabelecimento de um mercado comum. As privatizações do que formava até agora o setor público, com todos seus defeitos, significam amiúde uma luta contra o Estado. E o que dizer da verdadeira pirataria do patrimônio comum acumulado que elas implicam, concedendo a potentes grupos privados nacionais ou internacionais uma influência crescente sobre as decisões coletivas...?

O que queremos dizer é que a democracia é muito mais que um feito político, e que o mercado, sob sua forma capitalista, reduz a democracia a uma gestão de um Estado orientado a serviço da propriedade privada, auto-reduzindo seu espaço de ação nos demais setores. Democracia significa, então, simplesmente multipartidarismo e processos eleitorais.

Com certeza, uma democracia limitada é melhor que uma tirania. Neste sentido, o liberalismo político significou um progresso na história européia, em direção à liberdade, e à descolonização, como um processo político, estendeu no Sul um verdadeiro desejo de democracia. No entanto, estes processos, enxertados numa economia cada vez mais desenraizada do corpo social e que põe seus objetivos nela mesma, mais do que no bem-estar das populações, têm tido muito pouca autonomia. Inscreveram-se no quadro de relações sociais que faziam do Estado uma ferramenta principalmente a serviço dos interesses dominantes. Somente sob a pressão de grupos sociais desfavorecidos, que iniciaram lutas amiúde cruelmente reprimidas, o Estado começou a democratizar-se e pôde, como no caso do Estado social depois da Segunda Guerra Mundial na Europa, ser um árbitro entre as forças concorrentes e garantia de uma certa igualdade.

A ofensiva neoliberal, destinada a recompor o processo de acumulação do capital, pôs em questão este papel do Estado, debilitando-o nas sociedades mais organizadas e o reduzindo consideravelmente nas outras, em particular no Sul, e o fazendo inoperante no processo de globalização em função de seu caráter de Estado-Nação e da absorção do poder de regulação internacional pelas forças do mercado. É neste contexto que se situa a democracia parlamentarista, a de conquista do indivíduo e objetivo das lutas sociais, mas também realização somente parcial da democracia que hoje em dia está submetida a uma evasão do poder, quando ao mesmo tempo está presente como co-natural ao mercado.

No mundo inteiro, assistimos a uma queda da participação eleitoral. É um sinal de desânimo ante a incapacidade do setor político de transformar situações que se prolongam. Onde alguns partidos majoritários compartem o poder, constata-se que qualquer que seja a maioria, as coisas não mudam. Essa é a verdade. Mas se pode emitir também uma segunda hipótese de explicação: o poder de decisão sobre os grandes problemas da sociedade escapa, cada vez mais, aos políticos, ou transcende o espaço do Estado-Nação, ou está reduzido pela estratégia privatizante do capital. Cria-se, então, um clima de desencanto, não sempre consciente de suas causas profundas, mas que repercute sobre os comportamentos eleitorais.

Podemos concluir com algumas reflexões diante do futuro.

Primeiro, a democracia é uma realidade em processe, jamais uma sorte, sempre por construir. E não se pode conseguir sem condições, se entendermos por democracia a possibilidade para todos os seres humanos de serem cidadãos e de exercerem seu direito de participação em todos os domínios que orientam a vida coletiva. A democracia eleitoral é certamente uma conquista social, mas não representa senão uma parte da democracia, hoje em dia cada vez mais reduzida pela invasão do mercado.

Segundo: o que se chama de economia de mercado, que agita a democracia como bandeira ideológica, abre o espaço democrático a tudo o que não põe em questão a relação social que é fundamental, ou seja, a relação capital-trabalho (no sentido amplo), direto (o salário) ou indireto (por outros mecanismos distintos ao salário). Mas, ao mesmo tempo, fecha o espaço a outras organizações da economia (não há alternativas, dizia a senhora Thatcher) e reduz progressivamente o espaço democrático existente, transformando o cidadão em consumidor e os serviços públicos em mercadorias. Ao mesmo tempo em que afirmam a defesa dos direitos humanos, os atores da economia de mercado não duvidam em destruir as relações sociais de sociedades inteiras (as companhias petrolíferas, por exemplo), de se aliar a ditadores, de reforçar as instituições destinadas a garantir a hegemonia dos EUA (por exemplo, a OTAN) e de realizar guerras preventivas (contra o Afeganistão, o Iraque). A globalização do capital tende a esvaziar a democracia de seu conteúdo real e desemboca, não somente no desastre econômico da tremenda desigualdade atual, senão no desequilíbrio das tecnologias e dos investimentos e no eclipse do político.

Terceiro: devemos, pois, interrogar-nos sobre o porvir. Uma reconquista do setor político é uma necessidade, ao se tratar de ampliar os espaços democráticos, reforçando os órgãos de ação coletiva em todos os níveis. Isso significa a extensão de uma participação mais direta, não somente nos órgãos públicos (ou seja, mais do que uma eleição a cada quatro ou cinco anos, delegando um poder), senão também no seio das instituições do setor econômico (evitando o corporativismo que significou muitas vezes a co-gestão). Isso significa também uma descentralização real (o exemplo do “pressuposto participativo” de Porto Alegre é interessante) e a organização de mecanismos de controle democrático das instituições supranacionais.

Quarto: trata-se também de organizar um Estado eficaz em todos os níveis, ou seja, dotado de mecanismos permanentes destinados a evitar a burocracia e a corrupção, mas que invada ou afogue a sociedade civil, como foi o caso do que se chamou o socialismo real. Tal Estado, na medida em que é fruto de um processo democrático, terá que contribuir para restabelecer a economia.

Isso será possível somente se o Estado se empenhar em resolver os problemas da justiça e da eqüidade e com a difusão de uma cultura política de participação. Existem numerosas formas concretas de realização de tal objetivo, real alternativa ao sistema predominante hoje em dia e essa é a tarefa que devemos realizar.

 

François HOUTART

Bélgica – América Latina