A outra economia que precisamos

A outra economia que precisamos

Camila Piñeiro Harnecker


Não se trata só de redistribuir riqueza, mas, sobretudo, de criá-la de forma justa

Não há uma caracterização precisa do que constitui “outra economia”, mas muitos achamos que se trata não só de redistribuir a riqueza, mas de criá-la de modo diferente. A história nos ensina que enquanto existir propriedade privada sobre os meios de produção, os interesses sociais afetados por eles acabarão subordinados à “necessidade” de acumular ganâncias e criar custos para triunfar na competência do mercado. Sob uma organização econômica marcada pela propriedade privada e pelas relações mercantis ou “de mercado”, ambas atomistas e excludentes, tanto os produtores como os consumidores eventualmente veem as contribuições a fundos sociais como um peso, e tentam se livrar da responsabilidade de satisfazer as necessidades sociais. A solução portanto é reorganizar os próprios ciclos de produção-consumo e não nos limitar a tentar corrigir as suas falhas a posteriori. Onde está a justiça, quando se exclui da tomada de decisões aquilo que vai ser afetado por sua implementação?

Substituir a lógica da ganância por satisfazer necessidades sociais

Uma «outra economia», portanto, tem que mudar sua lógica de funcionamento. O mandato das empresas não pode consistir em maximizar a ganância. O objetivo das relações de intercâmbio entre produtores e consumidores não pode ser maximizar os benefícios de cada parte. Em ambos os casos se ignoram os interesses de terceiros, afetados por estas atividades econômicas. Parece ser mais racional que os agentes econômicos levem em conta interesses sociais, pelo menos os dos grupos, sobre os quais pesam mais diretamente, ou aos que mais se devem. Em lugar de aumentar benefícios individuais definidos de modo estrito, os agentes econômicos deveriam procurar a satisfação das necessidades e aspirações sociais; ou o que é o mesmo, que estas sejam tomadas levando em conta o mais possível a definição dos seus interesses individuais, de modo que possam satisfazê-los simultaneamente.

Não há responsabilidade social sem participação

Porém, não basta que os agentes econômicos prometam que vão levar em conta os interesses sociais que serão socialmente responsáveis. Uma «outra economia» precisa mudar a forma em que está organizada e, em particular, a maneira em que as decisões são tomadas; é aí que está o poder. Sem a participação de representantes de interesses sociais na tomada de decisões não há garantia de que eles serão levados em conta, e, menos ainda, que os que interpretam outros interesses como seus, correspondam à realidade. A propriedade social dos meios de produção (entendendo propriedade como um sistema complexo que determina o poder de controle e gestão) não pode ser concebida sem a participação dos grupos sociais mais afetados pela atividade desses meios. Assim, outra economia é, em essência, uma economia em que as instituições (agentes e relações entre eles) estão sob o controle social.

Democratização para articular interesses sociais

Este autogoverno ou autogestão social, dada a heterogeneidade ou autogestão de interesses, só é possível mediante uma democracia verdadeira que permita a construção de interesses sociais a partir de interesses individuais e grupais. A deliberação nos processos de tomada de decisões, no padrão de uma moralidade solidária, é a via fundamental para conseguir interesses que inicialmente poderiam parecer irreconciliáveis. A gestão democrática das instituições econômicas leva implícito o estabelecimento de relações sociais de associação e cooperação em lugar de subordinação e competência.

Participação como meio fundamental para o desenvolvimento humano pleno

A democratização das instituições econômicas deve ocorrer para interiorizar não só os interesses sociais de grupos externos às empresas, mas os interesses dos próprios trabalhadores. Seria contraditório democratizar as empresas a partir de fora e ao mesmo tempo ignorar os interesses daqueles que nelas trabalham. Uma «outra economia» não são simples recursos do processo produtivo, mas leva em conta a necessidade de desenvolver-se como seres humanos plenos: sendo criativos, autorrealizando-se profissionalmente, relacionando-se harmonicamente com outras pessoas e com a natureza; com capacidades que possam ser alcançadas só mediante a sua participação na gestão. Os diferentes modelos de democracia trabalhista que têm lugar nas empresas autogestionadas devem portanto ser partes constitutivas da nova economia; ainda que procurando articular os interesses grupais dos coletivos trabalhistas com os sociais, pois devem reconhecer que a riqueza que eles criam não é fruto só do seu trabalho coletivo, mas que também a sociedade tem contribuído indiretamente, inclusive com gerações anteriores de seres vivos.

Pluralidade privilegiando o futuro

Com grandes riscos, a «outra economia» que precisamos é um sistema com uma pluralidade de agentes que não exclui as formas empresariais e relações de intercâmbio herdadas do passado (empresas privadas que contratam trabalho assalariado e relações de mercado, respectivamente), mas procura-se limitá-las a setores não estratégicos – excluindo também as atividades relacionadas com necessidades básicas-, e regulá-las de modo que respondam o mais possível à satisfação de necessidades sociais. O que marca a diferença da economia que queremos é o predomínio das formas empresariais e relações de intercâmbio que deixam entrever o futuro desejado no presente: empresas geridas democraticamente por seus trabalhadores e representantes dos interesses sociais relacionados; e relações socializadas de intercâmbio horizontal.

A partir da concepção do controle macroeconômico

Tem-se avançado na conceituação teórica e nas experiências práticas do que poderiam ser as empresas autodirigidas. Afastando-nos da visão simplista de «autonomia total contra subordinação total», a prática tem demonstrado a necessidade e fatibilidade de formas empresariais mais complexas que permitam não só o controle dos trabalhadores, mas também, quando for o caso, um controle compartilhado com os grupos influenciados por atividades econômicas. Assim agora existem, além das cooperativas tradicionais de autonomia absoluta de um só tipo de participantes, as cooperativas de participantes múltiplos onde se podem incluir os consumidores provedores, governos e organizações locais, assim como outras formas de autogestão.

Existem diferentes propostas de como socializar as relações de intercâmbio: de um lado estão as que procuram fazê-lo sem nelas intervir diretamente, só estabelecendo um ponto de controle indireto mais estrito, que estabeleça os comportamentos esperados, as sanções e prêmios correspondentes. Por outro lado, estão os que defendem a necessidade de regulamentar os produtores, consumidores e representantes de interesses sociais, e que se coordenem explicitamente as suas necessidades de consumo e capacidades produtivas. Nestes modelos de planificação democrática ou participativa, os interesses sociais podem ser interiorizados de forma indireta, mediante a intervenção na gestão de representantes de interesses sociais, ou de forma indireta, através de um processo repetitivo de ajuste a posteriori entre a demanda e a oferta, onde os preços causem custos e benefícios sociais avaliados democraticamente.

Não se concebe uma economia controlada pela sociedade sem um sistema político realmente democrático que represente os seus interesses mediante procedimentos democráticos, não só para escolher representantes, mas também para decidir estratégias, pressupostos, políticas macroeconômicas e programas sociais conformes. Mas a institucionalidade da outra economia não se reduz a isto, nem sequer à participação na gestão econômica de representantes de governos democráticos. De fato, nem nos serve uma economia burocratizada e, portanto, ineficaz. O controle social terá que ocorrer mediante vias menos diretas ou mediante a intervenção de outras organizações que representem mais efetivamente interesses particulares de setores sociais. É necessário combinar a economia de atores descentralizados com o controle social.

É preciso perfilar uma visão mais clara e aplicável do entorno macroeconômico que se requer. A experiência nos mostra que as relações mercantis, longe de propiciar a coordenação econômica entre os atores sociais, levam à desintegração social e atentam contra a sobrevivência de formas empresariais alternativas. Pior ainda, sem o controle social sobre a atividade econômica, esta acaba estando a serviço dos mais poderosos, em lugar das maiorias. É necessário observar e levar à prática os mecanismos de controle social direto ou indireto que sejam os mais adequados para os diversos tipos de empresas, interesses sociais e contextos onde se encontram.

 

Camila Piñeiro Harnecker

Havana, Cuba