A era da comunicação

A era da comunicação

José COMBLIN


Desde os anos 60 alguns futurólogos anunciaram o advento de uma nova era na história da humanidade. Nos anos 90 era já uma proclamação generalizada: a humanidade havia entrado em uma nova época, dando um passo gigantesco que estava provocando a mudança mais radical do que tudo o que se tinha conhecido até então. Nos séculos passados se havia proclamado a agricultura; depois veio a indústria; mas agora estamos na era da comunicação.

Deram-lhe vários nomes. Era a “época da informação”, porque esta iria dirigir tudo. O que importaria seria ser informado antes dos outros. À nova época chamaram também “sociedade pos-industrial”, ou moderna, o que sugeria a idéia de uma ruptura radical. Também a chamaram de “era do conhecimento”, ou do saber: o que domina o saber domina o mundo. O saber é o verdadeiro poder. Aqueles que não têm acesso ao saber estão perdidos. Mas toda a humanidade – diziam – entrará agora na “era do saber”. Em definitivo, a atividade humana que importa é a comunicação. Nasce um novo modo de viver, uma nova atividade humana, uma nova forma de emprego: de agora em diante o trabalho será um trabalho de comunicação do saber. Os agricultores seriam cada vez menos necessários. A indústria pode funcionar sem operários. E ao que se dedicam os trabalhadores? À comunicação; recebem e mandam mensagens.

Mas o que dizem estas mensagens? São, antes de tudo, as cifras; transmitem informações sobre os movimentos do dinheiro e fazem transferências de dinheiro. É a partir daí que a “especulação” será uma atividade humana fundamental, o novo modo de ganhar a vida. A partir de agora os ricos já não são produtores, mas manejadores do dinheiro. O lugar da produção do dinheiro são agora as Bolsas de Valores: a humanidade viverá em função delas. Com efeito, hoje em dia a imensa maioria dos capitais circula de uma Bolsa para a outra, em um jogo infinito de especulação. Desta forma se está criando uma riqueza virtual que cria as grandes fortunas. Receber a informação oportuna antes dos demais e dar ordens financeiras antes dos outros – é o segredo de muitas grandes fortunas na atualidade. Mas ainda não se sabe se este modelo se aplicará um dia a toda a humanidade. Os profetas da comunicação entendem o saber em um sentido financeiro: o saber principal é o saber sobre a evolução do dinheiro; todas as demais informações estão em função destas informações financeiras.

Por trás de tudo isto está uma ideologia que procura convencer os cidadãos do mundo para que aceitem que os que dominam a informação podem tranqüilamente dominar o mundo. Não se trata de uma realidade que pode ser observada, mas de um mito, e um mito muito poderoso e que quase atinge o seu objetivo: chegar à passividade da população mundial, que permite que entregue o poder aos donos do dinheiro.

Os profetas da era do saber invocam como argumento o desenvolvimento das tecnologias da comunicação. Este desenvolvimento é evidente, mas não tem necessariamente o significado que se lhe quer atribuir.

A telefonia teve desenvolvimento de um modo que não se poderia imaginar no século XX. As invenções que levaram à comunicação por internet conheceram uma aceleração incrível. As máquinas mais modernas que se vendem no comércio já são obsoletas no dia em que chegam ao mercado, porque já existe outra que está saindo da fábrica, e a que sai da fábrica já está obsoleta, porque já estão fabricando outras mais desenvolvidas. Neste momento os meios de comunicação mais tradicionais, como a imprensa, a rádio ou a televisão estão em dependência total da telefonia e da Internet. A profissão do jornalista mudou radicalmente.

Todos estes aparatos de comunicação em 1997 constituíam já 10% da economia mundial. Hoje em dia será duas ou três vezes mais, pois o consumo dos telefones portáteis e dos computadores cresce de modo explosivo. Este fenômeno econômico explica por que se faz tanta propaganda da ideologia da comunicação: trata-se de vender não só idéias, mas aparelhos de comunicação. A ideologia faz parte da publicidade. Graças à publicidade, mesmo os pobres acreditam que, se não têm estas máquinas, serão seres infra-humanos.

A nova tecnologia da comunicação permite efeitos antes tidos como impossíveis. Em primeiro lugar, permite a comunicação imediata, em todo o mundo, das informações financeiras e torna possíveis os movimentos de dinheiro de modo imediato. Julga-se que em cada dia se fazem transferências pelo valor de um bilhão de dólares entre as Bolsas de Valores do mundo.

A era da comunicação é a base da teoria da globalização. Esta globalização é possível graças à comunicação imediata que ignora as fronteiras e as distâncias. A comunicação por internet não custa quase nada, e graças a isto as empresas podem diariamente enviar milhares e milhares de informações. Alem do mais, a comunicação barata e imediata ajuda também a difusão e o crescimento das multinacionais. Graças aos meios de comunicação é possível descentralizar a produção e produzir em cem países diferentes as peças de um objeto complexo. É possível a “deslocação” e a terceirização. Cada peça é produzida no país em que as condições são mais favoráveis: impostos e salários baixos, tranqüilidade social, vantagens de clima, facilidade de matérias primas, etc.

Segundo a ideologia, a nova comunicação realiza a verdadeira democracia, porque permite que cada pessoa possa se expressar. Alem do mais supera as fronteiras e cria um só mercado no planeta: todos são iguais, todos podem competir, todos podem participar do diálogo permanente entre todos. Seria o fim das guerras e dos conflitos, o começo de uma era de paz universal.

Supõe-se que o que provoca os conflitos seja a falta de comunicação. Cada vez que aparece uma nova tecnologia de comunicação se anuncia uma era de paz universal: quando se inventaram as estradas de ferro proclamou-se que os trens estabeleceriam a fraternidade entre os povos. Depois se inventou o telégrafo: de novo se pensou que o telégrafo criaria a paz universal. Chegou a rádio e se anunciou o mesmo. Depois veio a televisão, e agora a internet, que é a depositária das promessas da paz universal.

Não há dúvida que, considerando os fatos, não aconteceu exatamente o que dizia a ideologia. Em primeiro lugar, as novas tecnologias da comunicação serviram para fins militares. Os trens facilitaram os movimentos dos exércitos. A telegrafia e a rádio facilitaram a comunicação nos campos de batalha. A Internet surgiu das investigações das Forças Armadas norte-americanas para poderem se comunicar sem possibilidade de interferência do inimigo. Estas tecnologias foram anteriormente tecnologias militares que tiveram também efeitos civis. Não é claro que tenham sido fatores de paz ou de reconciliação entre os povos. todas as tecnologias podem ser usadas em sentidos diferentes, e, muitas vezes, “os filhos das trevas são mais astutos do que os filhos da luz”.

Quem dispõe dos meios de comunicação mais sofisticados tem uma superioridade militar imensa, porque tem inumeráveis informações sobre o inimigo e este está como que ao descoberto, sob a vigilância do seu adversário.

Os norte-americanos não teriam podido fazer a guerra do Iraque como a fizeram se não tivessem tido todo o sistema de informação que tinham. Aquele que tem as informações acredita-se invulnerável e todo poderoso. Não há dúvida que, apesar de todo o sistema de informação e de comunicação aconteceu o que aconteceu a 11 de setembro de 2001. As autoridades tinham todas as informações, mas não lhes prestaram atenção. A tecnologia não faz com que o presidente da república preste atenção a uma informação. A tecnologia não supre a atenção humana com sua força e suas debilidades. Entre milhões e milhões de informações, a pessoa receptora terá que saber descobrir qual é a informação importante. A tecnologia não lhe dá esta informação.

Nem tão pouco a tecnologia diz se uma informação é exata ou falsa. Nos USA, durante meses, todos os meios de comunicação transmitiram informações falsas sobre a situação militar do Iraque, inventando armas que não existiam, mas cuja presença precisava legitimar a guerra. Todos os meios de comunicação deram a todo o povo dos Estados Unidos informações falsas para que aprovasse a guerra do Iraque. Já havia acontecido a mesma coisa para justificar a guerra do Vietnam, e para justificar a guerra do Afganistão. Quase todas as guerras usaram a mentira para convencer ao povo da necessidade da luta, para que todos estejam dispostos a morrer pelo regime. A novidade é que os meios de comunicação hoje permitem mentir muito mais e divulgar muito melhor as mentiras.

Houve casos famosos de mentiras. Nos USA o jornalista Jack Kelley, considerado o melhor jornalista do país, jornalista do melhor jornal americano, o USAToday, dava entrevistas com chefes de Estado, e vedetes de todo o tipo. Descobriu-se um dia que tinha enviado ao seu jornal centenas de entrevistas falsas, que nunca tinham acontecido, e que a direção as publicava sem suspeitar de nada. Os redatores tiveram de ser despedidos. Também o New York Times publicou informações completamente falsas e puramente inventadas de Jayson Blair, outro famoso jornalista. Também os dirigentes tiveram de demití-lo. E quantos outros casos menos conhecidos!

Muita gente se deixa enganar e acredita que tudo o que dizem os meios de comunicação seja verdade. Se a informação é repetida lhe dão mais crédito ainda. Se são muitos os meios de informação que repetem a mesma coisa, então já não há dúvida. Os ingênuos não sabem que todos copiam a informação sem verificar a sua veracidade.

Os seus defensores pretendem que os novos meios facilitem o diálogo entre todos os seres humanos da terra. Agora todos podemos ser vizinhos. Mas isto não facilita necessariamente ao diálogo pacífico. É mais fácil ter boas relações com pessoas que estão à distância do que com pessoas vizinhas. As tribos ou os países vizinhos sempre têm sido mais inclinadas à guerra. O contato direto manifesta de modo mais vivo as diferenças de cultura, de religião, de modo de viver, de códigos morais. Estas diferenças sempre presentes excitam a irritação. Na atualidade os meios de comunicação aumentam sem cessar a hostilidade entre cristãos e muçulmanos. Não haveria tanta hostilidade se os meios não ressaltassem todos os conflitos particulares entre duas comunidades. Ao final a informação irá provocar a guerra ou a perseguição.

As informações são cada vez mais de tipo comercial. Facilitam a publicidade, a venda e a compra de mercadorias materiais ou culturais. Tendem a reforçar a cultura ocidental atual que trata os seres humanos exclusivamente como consumidores. Oferecem inúmeros dados sobre tudo o que se pode comprar e facilitam a operação de compra. Levam as pessoas a comprar muitas coisas de que se poderiam prescindir. Nesta ideologia o ser humano vale por aquilo que pode comprar.

A mesma cultura se transforma em instrumento comercial. A Internet oferece milhões de “sites” que tomam lugar da literatura. São redigidos em forma comercial, com a intenção de atrair o comprador. Apresentam tudo como mercadoria. Tudo adquire valor quando é propriedade privada. O público, o comunitário não valem: ou melhor, não existem, porque os meios de comunicação tendem a destruí-los.

Os meios criam uma linguagem comum, linguagem sem estilo, de tipo publicitário. Tudo se comunica em inglês, ou é traduzido do inglês, que é o idioma comercial por excelência. O inglês internacional proporciona o meio de comunicação universal. É a destruição da literatura. Os jovens que adotam o estilo dos “sites” não sabem redigir. Somente poderão ser jornalistas de modo uniforme, comum a todos, sem personalidade, mas sempre demonstrando interesse comercial.

Existe outro problema: na medida em que se usam meios de comunicações sofisticados, aumenta a possibilidade dos serviços de inteligência. Em outros tempos a polícia abria as cartas e captavam algumas informações sobre as pessoas. Na medida em que os meios acumulam mais informações e na medida em que as pessoas se comunicam mais, permitem que os serviços de inteligência tenham uma apresentação mais completa de todas as suas atividades. Recebem milhares de informações. Torna-se mais fácil controlar a vida dos cidadãos. Graças ao telefone e à Internet a polícia pode ter uma ficha completa de cada pessoa, inclusive sobre as minúcias das suas vidas, por exemplo: todas as compras que fazem e todas as pessoas com as quais se comunicam. Graças à Internet é fácil classificar milhões e milhões de informações e em um segundo ter a ficha completa de toda a vida de uma pessoa... Este sistema porem não é perfeito, mas nos Estados Unidos já está muito desenvolvido para todos os habitantes muçulmanos.

Do mesmo modo as empresas podem saber o que as pessoas compram, e orientar a publicidade em função de gosto de cada comprador.

A partir dos anos 60 nos Estados Unidos se privatizaram os meios de comunicação. Desde então em quase todos os países, todos os meios são privatizados. Desde então a comercialização da cultura se estabeleceu como norma universal.

A privatização provocou imediatamente uma explosão de criação de empresas. Muitos acreditaram que podiam conquistar o mercado e tirar proveito da posição de quem entra primeiro no mercado. Apareceu um imenso mercado do saber. Muitos se lançaram a ele cheios de ilusões. Depois de poucos anos a maioria das empresas haviam falido. Nos anos 90 teve início um forte movimento de concentração das empresas. As mais fortes compraram as mais fracas e formaram conjuntos imensos. Em 1983 havia nos Estados Unidos 14.700 diários, 11.000 semanários, 1.000 canais de TV, 2.500 editoriais... Em 2001 a Clear Channel tinha 1.200 rádios neste país. Em 2003 quase tudo está nas mãos de 10 companhias gigantes. Na França a união de Hachette e Vivendi produziu o grupo Lardère, que controla 70% da edição francesa. Na América Latina a Televisa do México está criando um império em todo o continente. Nos Estados Unidos a fusão de 2000 da AOL e TimeWarner se fez por 165 bilhões de dólares. AOL era a primeira firma de Internet e o grupo Time-Warner era o maior grupo de informação, dono de edições, publicações, rádios, TVs, discos, isto é, todo o mercado cultural.

A concentração tende a unir em uma só empresa todos os setores da comunicação, desde a Internet até a TV, as publicações, a rádio, etc. Rupert Murdoch, o super gigante australiano, dono de centenas de empresas sobretudo no mundo anglo-saxão, quis comprar em 1999 o clube Manchester United, o mais famoso da Inglaterra e um dos grandes clubes mundiais. Emilio Azcárraga, dono da Televisa, é proprietário de três clubes de futebol e controla muitos outros. Como a transmissão dos jogos de futebol é uma das grandes fontes de lucro da TV, é uma vantagem ser dono da TV e dos clubes de futebol ao mesmo tempo.

É comum que as empresas que dominam o campo da comunicação sejam também donas de outras indústrias. Na França todo o mercado cultural é dominado por empresas de armamentos. As empresas procuram ser donas da maior diversidade possível de produção. Para as indústrias é muito interessante poder controlar os meios de comunicação que lhes pode fazer publicidade. Para uma indústria de armamentos é muito importante controlar a TV, os jornais, a rádio, etc., para fazer publicidade e estimular as guerras consumidoras de material bélico. Interessa-lhes controlar todas as informações que os cidadãos vão receber. Para elas paz significa quebra.

E isto ocorre porque os meios de informação querem. Os jornais mais importantes publicam 10% das notícias das agências. Os leitores lêem 10% das notícias que estão em um jornal, ou seja, 1% das notícias disponíveis. As rádios publicam muito menos e a TV menos ainda. Quer dizer: é preciso fazer opções. Por que publicam uma informação e não outra? É claro que escolhem segundo critérios definidos pelos donos dos meios de comunicação.

Em fevereiro de 2005 a Câmara dos Deputados do Brasil votou uma lei que permite os transgênitos. Tinha havido discussões apaixonadas durante anos. Ao final venceram os defensores. Mas o interessante é que durante todos estes anos e até durante a própria votação um nome nunca foi pronunciado: Monsanto! Era o nome tabu, sagrado, mais sagrado do que o nome de Deus para os judeus. Monsanto é a empresa norte-americana que tem toda uma tecnologia de transgênitos. E todas as patentes. Monsanto produz e vende não só sementes transgênicas, mas também os herbicidas, os pesticidas, os fertilizantes... toda a corrente de produtos. Quem usa produtos Monsanato vai ter que pagar royalties. Monsanto controla a metade da agricultura dos Estados Unidos, agricultura subsidiada pelo governo, às vezes até 40%. E na América Latina Monsanto inventará qualquer pretexto que subsidiem também a ela. A empresa é poderosa: sabe apresentar aos diretores dos meios de comunicação argumentos que convencem.

Sem dúvida os povos começam a abrir os olhos entender que tudo o que acontece no mundo da comunicação não é necessidade histórica, mas resultado de decisões políticas, entre elas a liberação imposta pela OMC e a conseguinte privatização da informação e do que chamam do “saber”. O poder da sociedade e o poder do Estado têm sido anulados quase completamente. A missão do Estado consiste em dar plena liberdade. Este é o papel que lhe reserva a globalização imperial da atualidade.

Em tempos passados se podia falar de um quarto poder que era o poder da imprensa. A imprensa assumia muitas vezes o papel da crítica dos três poderes clássicos – executivo, legislativo e judiciário - . Estava orgulhosa da sua independência, com a sua atitude crítica limitava os abusos dos outros três poderes. Hoje em dia já não há três poderes, mas um só, que é o poder do FMI, do Banco Mundial, da OMC, das multinacionais, que, em conjunto, têm como braço executivo o poder dos Estados Unidos. O antigo quarto poder perdeu toda a vigência. A imprensa e os outros meios de comuinicação entram na dependência do sistema ao se integrar em empresas gigantes... Os jornais não são livres, mas pertencem a grupos financeiros. A famosa independência dos jornalistas desapareceu quase completamente. Por isto, no Fórum Mundial de Porto Alegre, em janeiro de 2003, Ignácio Ramonet, diretor do Le Monde diplomaticamente propôs a criação de uma instituição crítica do mundo da informação. Seria um quarto poder.

Em 27 de janeiro foi fundada uma instituição chamada Média Watch Global que teve oportunidade de se manifestar no Primeiro Congresso Mundial sobre a sociedade de informação em Genebra(Suíça), de 10 a 12 de dezembro de 2003. O segundo Congresso teve lugar na Tunísia em 2005. Media Watch Global tem como objetivo a crítica e a denúncia da manipulação da informação, a crítica às campanhas de intoxicação à base de mentiras repetidas sem fim. É um começo que mostra que está nascendo uma nova consciência do que é chamada “era da comunicação”. Em muitas regiões já há associações que levantam a voz quando os meios de comunicação estão servindo aos interesses das empresas, em vez de dar informações exatas sobre a situação do mundo. A tarefa é urgente e todos nós somos convidados a nos integrarmos a este movimento.

 

José COMBLIN

João Pessoa, Brasil