A Causa Negra

A Causa Negra

Augusto Marcos Fagundes Oliveira


Uma das Grandes Causas da humanidade, a Causa Negra, reflete parte da trajetória humana. A condição escrava negra, assim chamada, viria a ser componente fundamental de exploração humana. Saqueados de seus pertences, saberes, referências, aprisionados e transportados como coisas, descartáveis, condenados por sua origem ou traços físicos, obrigados à travessia para lugares desconhecidos, travessias nas quais os sujeitos muitas vezes se irmanavam na tentativa de se solidarizar a superar as adversidades que rompiam com sua compreensão de mundo e sua forma de ser no mundo. E, com relativa frequência, muitos assistiam a alguns dos seus vivos ou mortos serem lançados ao mar, e cujas justificativas reforçavam a desumanidade que lhes fora imposta em nome do avanço do capital colonial.

A escravidão negra passaria a designar a africanos e seus descendentes, e a ameríndia – os negros da terra, todos negros desrespeitados, sofrendo ações de desterritorialização e desmembramento de famílias. Usados como seres marginais ao sistema da sociedade colonial, contudo resistentes à condição escrava, a criar meios de sobreviver e persistir física e simbolicamente em meio a essa desdita por não aceitar a dominação, reconhecidos como classes perigosas, criminalizados, ou percebidos como gente inferior, sujeitos que enfrentam tensões sociais, e buscando superar adversidades, sejam aquelas (im)postas aos seus corpos físicos, sejam aos corpos sociais, aos seus lugares de referência, seus trânsitos e fazeres.

Alijados no próprio sistema que trouxe nossos ancestrais, e considerando que nem toda resistência ou negociação estavam articuladas coletivamente, os maiores marcos de resistência são os quilombos e as fraternidades religiosas negras – estas divididas em terreiros e nos agrupamentos da religião dominante, que também se readaptam, chegando a ser encontrados os quilombos de serviços aglomerados ao mundo urbano do período imperial brasileiro, que forneciam desde mão de obra a utensílios aos serviços domésticos; os terreiros, ainda que demonizados também, e em paralelo aos quilombos de serviços, auxiliavam na fé popular e na dita medicina popular, com parteiras e benzedeiras e remédios caseiros; por sua vez, as fraternidades de igrejas, ligadas, portanto, à religião dominante, reforçavam grupos de ajuda mútua, de apoio e acolhimento e cuidados com a velhice, adoecimento e morte.

Se ao imaginário popular tornou-se comum associar raça à classe, e se historicamente tais grupos negros, ou enegrecidos, serviam como base da exploração da força de trabalho, e costumeiramente criminalizados, associados seus batuques, capoeiras e maculelês unicamente ao fomento de violência, ali também se estabeleciam formas de alianças e de pertencimento. As pontas de rua, ruinhas, favelas e zonas portuárias revelavam outros modos de poder e solidariedade nem sempre letradas, ou reconhecidas pela sociedade dominante, paradoxalmente revelando coesão e conflito, mesclando-se em tradições e calendários locais, apesar das desigualdades sociais. Tais vozes atravessando as letras, desde a catadora de papéis que se revelaria escritora, a mecanismos de ajuda mútua para assegurar educação, atendimento em saúde, e assegurar formação profissional de melhor qualidade, utilizando desde formas de ação educacional pela escrita e arte, denunciando discriminações, intolerâncias e racismo, ocupando espaços e se assumindo negras e negros, cobrando reparação, respeito e acessibilidade.

A postura de autoafirmação acolhida por uns, pelos que efetivamente creem e se dedicam a repartir pães e entendimento, vai de encontro à postura dominante que, em nome de uma suposta democracia racial, reproduz desigualdades sociais, nega acessibilidade, e, pelo reforço à indústria cultural, busca esvaziar a memória social. Aqui então cabe o chamamento pelo coletivo, por memórias de acolhimento e partilha, pela afirmação das diferenças e da potência do conviver na e com as diferenças; para tal, urge dar-se a mão, encruzilhar caminhos, morros, asfaltos e terras de chão batido, em nome das Grandes Causas humanas, que nos dignificam, em nome da potência da fraternidade de tantos humanos diferentes e iguais em direito.

 

Augusto Marcos Fagundes Oliveira

Ilhéus, BA