2014: 500 anos da conversão de Las Casas aos indígenas

2014: 500 anos da conversão de Las Casas aos indígenas

Eduardo Frades


O jovem sevillense Bartolomeu de Las Casas chegou à América em 1502, com apenas 18 anos, para ser pião ou soldado raso, conseguir o lugar de “doutrineiro”, como clérigo menor que era, ou ocupar-se das fazendas de seu pai. Realmente fez um pouco de cada coisa destas; porém em 1514 tinha já deixado as armas, era sacerdote, tinha celebrado a sua primeira “missa nova” em 1510 e tinha uma fazenda com indígenas “entregues a seus cuidados” (encomendados), na qual criava porcos, cultivava produtos agrícolas e tinha até uma atividade extrativa mineira, tudo isso à custa do trabalho quase escravo dos indígenas, embora os tratasse bem. Dava-se muito bem com estas atividades, tanto que os ganhos cobriam as despesas de viagens para a Espanha, e até conseguir por lá algumas fazendas. Trabalhava com a colaboração do seu amigo leigo, o vasco Pedro de Rentería, melhor do que ele, mais piedoso e, talvez, de trato mais delicado com os indígenas. Todavia, como sacerdote, se dedicava somente aos seus “cristãos espanhóis”, e não aos indígenas.

De acordo com o seu relato de 1559, já na fase final de sua vida, o passo decisivo para a sua “conversão” se deu na festa de Pentecostes, que caiu no dia 27 de maio de 1514, no povoado de Santo Espírito, perto da sua fazenda do Canarreo, onde ele residia, sendo ele o único padre da região, enquanto preparava seus sermões, lendo textos da Bíblia. Ele nos conta, com muitos pormenores externos, mas com silencioso pudor sobre as suas reações interiores, o ponto de partida da sua “primeira conversão”.

Vale a pena citar amplamente este texto

“Andando por este caminho e aumentando a cada dia a safra de vidas humanas, crescendo cada dia mais a cobiça, e assim mais gente morrendo, o clérigo Bartolomé de Las Casas... andava bem ocupado e muito solícito com as suas fazendas, como os outros, enviando índios de seu departamento para as minas a fim de extrair ouro e trabalhar no plantio, e aproveitando deles o mais que podia, mesmo que sempre teve a atenção de mantê-los vivos, quando era possível, e tratá-los brandamente, compadecendo-se de suas misérias; contudo, não teve maior cuidado que os outros em lembrar-se que eram “homens infiéis” e que ele tinha a obrigação de ensinar-lhes a doutrina, e trazê-los para dentro do rebanho da Igreja de Cristo”.

Ele não faz para si muitas concessões: ele é um a mais na busca da riqueza, à custa da exploração dos indígenas. Faz somente notar que os tratava com brandura, e que sentia compaixão; mas se recrimina de não ter procurado a conversão dos indígenas mais que os outros, visto que ele era o único clérigo na região. Foi por esta razão que decidiu celebrar a Páscoa com os espanhóis, rezando Missa para eles e pregando; preparando por causa disso os seus sermões e, refletindo, “começou a considerar consigo mesmo sobre algumas passagens da Sagrada Escritura...”.

Neste contexto, topa com o texto do Eclesiástico, que cita abundantemente nas suas obras, porque lhe criou um grande impacto: 34,21-27, na tradução da vulgata latina, correspondente a 34,18-22 das nossas traduções bíblicas: “Quem oferece um sacrifício à custa da vida dos pobres, é como quem sacrifica um filho diante de seu pai...”. Ele mesmo comenta a sua reação: “Passados alguns dias nestas considerações, e a cada dia mais se certificando da distância que existia entre o que deveria ser feito segundo o direito e o que era feito na realidade, confrontando um e outro, determinou para si mesmo, convencido pela própria verdade, ser injusto e tirânico tudo o que se cometia, nestas terras das Índias, contra os próprios índios”.

Mesmo reconhecendo que “sempre teve respeito com os nativos... Decidiu de condenar as repartições e as encomendas (de índios) como injustiças e tiranias, e deixar espaço e liberdade para os índios”. Comenta que “não porque ele fosse melhor cristão do que outros, e sim por uma compaixão natural e lastimosa, ao ter que ver padecer por tão grande sofrimento e injustiças, pessoas que nunca o mereceram”. Esta decisão foi aplaudida por Rentería, e ele, além de dar o exemplo, começou a pregar com as suas palavras a todo fazendeiro que deixasse livres os índios. Com a sua pregação não conseguiu nada, a não ser a fama de santo; e foi por isso que buscou o caminho da política, e lutou neste campo por toda a sua vida contra o vento e a maré. Já em 1515, com cartas de apoio de Frei Pedro de Córdoba para o seu Provincial Diego de Deza, e junto com Frei Antônio Montesino, vai para Plasencia, procurando o rei Fernando, para conquistá-lo para a causa da justiça.

A conversão não foi, portanto, um episódio instantâneo, e sim o fruto de um longo processo; porém, de agora em diante, a vida do clérigo Las Casas dará uma virada radical. A razão última, expressa com palavras que refletem sem dúvida muito do seu caminho posterior, foi que “determinou dentro de si, convencido pela mesma verdade, ser injusto e tirânico tudo que se fazia e cometia nestas Índias contra os índios”. Passando alguns dias nestas considerações, andava se confirmando cada vez mais, “pelas leituras que fazia e pelo modo de ver e avaliar os fatos, confrontando uns aos outros”. Isto foi como o cair de um véu dos olhos, e conseguir assim uma nova visão da realidade e uma chave de leitura dos fatos e dos escritos, como ele mesmo nos adverte:

“Em confirmação deste fato, tudo que lia e achava favorável e costumava dizer e afirmar que, desde o primeiro momento em que começou a se desfazer a trevas daquela ignorância, nunca tinha lido num livro de latim ou num romance – que ao longo de quarenta e quatro anos foram sem número – em que não encontrasse motivo ou autoridade (a Bíblia é sem dúvida a primeira) para provar ou fortalecer o direito das populações indígenas, e para proclamar a condenação das injustiças que lhes tinha sido feito, junto com maus tratos e danos”.

Prováveis causas desta mudança radical

Entre as experiências que levaram Las Casas à sua conversão em 1514 e ao correspondente novo olhar que desde então adota, tem que levar em conta, sem dúvida, os dados negativos contra os quais seu espírito cristão vai se rebelando cada vez mais profundamente. Um destes é o terrível episódio de morte violenta em Caonao, onde afirma que “improvisamente os cristãos se revestiram do diabo e passaram pela espada, na minha presença, - sem motivo ou razão para isso – mais de três mil pessoas que estavam sentadas diante de nós, homens, mulheres e crianças”. E não é o único caso de morte violenta, durante ou fora da guerra, porque participou de várias, durante a sua estadia nas Antilas, desde 1503, talvez contra a cacique Anacaona, e depois com Diego Velásquez e outros capitães, na época do governador Frei Nicolas de Ovando.

Las Casas foi também testemunha impotente da morte, por fome, de milhares de indígenas. De todas estas, ficou muito impressionado com o tremendo caso da morte prematura de sete mil crianças, à qual teve que presenciar durante seus primeiros anos. “As criaturas nascidas, morriam ainda pequena, porque as mães, por causa do trabalho e da fome, não tinham leite nas mamas; por esta causa, morreram na ilha de Cuba, estando eu presente, sete mil crianças no prazo de três meses”. A impressão deve ter sido tão grande, que ele relata este episódio por umas cinco vezes. Estas mortes antes do tempo, pela violência armada ou pela exploração desumana da vida dos indígenas, são o punctum dolens (a dor profunda) do qual arranca sua opção pela vida dos indígenas. A visão desta desgraça o leva a ter uma compaixão cada vez mais profunda, mais conforme ao do Deus dos oprimidos, que cuida pela vida de todos, especialmente dos pequenos e esquecidos, como afirmará depois.

Junto a estes estímulos negativos, tem que colocar os positivos vindos das atitudes cristãs de homens como seu amigo e sócio, o piedoso leigo Pedro de Rentería: preocupado com a sorte dos indígenas, e especialmente das crianças, para as quais pensa construir “colégios onde as crianças crescessem e aprendessem, e as fizéssemos escapar de uma morte tão violenta e veemente”. Era uma ideia compartilhada pelos franciscanos, com os quais este leigo exemplar mantinha muito contato e orientação espiritual. Não seria errado supor que foram as longas conversas com este sócio algumas das vias por onde Deus ia preparando-lhe a mudança decisiva. Rentería estava muito influenciado pela experiência, em Granada, do seu venerado mestre, o santo arcebispo Frei Hernando de Talavera. Tinha aprendido como “funcionário” de tal mestre, que foi antes confessor da rainha Isabel, e por fim “santo bispo de Granada”, sobretudo pelo seu tratamento muito humano com os “mudéjares” (população de origem árabe e muçulmanos, que foi conquistada na época pelos cristãos e que eram, sobretudo dedicados à agricultura) que viviam naquela cidade. E, alguns anos depois, o exemplo do conquistador convertido, Frei João Garcês, que “mostrou aos religiosos em particular modo, as execráveis crueldades que ele e todos os demais haviam cometido contra esta gente inocente”. Este frade dominicano acabou sendo o primeiro mártir nas terras de Cumaná, cerca do ano de 1516. Certamente, não podemos esquecer que, em primeiro lugar, os impulsos positivos foram através da leitura reflexiva da Palavra de Deus, como temos observado.

Em Las Casas, foram pesando de forma determinante especialmente as razões e as exigências dos frades dominicanos, desde o famoso sermão de Antonio Montesino em 1511 (o famoso “grito de La Espanhola”); mesmo que não tenha assistido, sem dúvida acabou chegando até ele a notícia. Foi o primeiro e maior grito cristão a favor do índio americano, que se fez escutar em toda a Ilha, muito antes que na Espanha. Las Casas deve ter sentido um forte impacto, porém não teve uma reação como poderíamos imaginar nós hoje, dada a sua trajetória. “Começou, digo, a considerar a miséria e a servidão que padeciam aquelas populações índias. Serviu-lhe para isto o que tinha ouvido dizer e experimentado, que os religiosos dominicanos pregavam, nesta Ilha Espanhola, isto é, que não podiam ter uma boa consciência os que prendiam os índios e que não queriam confessar e absolver os que os tratavam assim, coisa que o dito clérigo não aceitava”.

Ele mesmo nos relembra o episódio em que lhe foi negada a confissão. Quando procurou receber a absolvição de um dos frades dominicanos (provavelmente o próprio Frei Pedro de Córdoba), nos conta que não o convenceram as razões que lhe foram dadas para negar esse sacramento. Estava muito ocupado com as suas fazendas e não tinha consciência de culpa; talvez porque tratava “humanamente”, isto é, com compaixão, os indígenas dentro de suas encomendas. Porém, desta vez, o golpe foi mais fundo e pessoal. Lembra, sem dúvida, o que lhe foi dito: “Conclua, padre, que a verdade teve sempre muitos contrários e a mentira muitas ajudas”. Mas aquela disputa com o frade dominicano valeu “para chegar a considerar melhor a ignorância e o perigo em que andava, tratando os índios como os outros”, que ele confessava e absolvia neste pe¬ríodo. Porque sua função de sacerdote, o obrigava à sua tarefa pastoral, pelo menos celebrando confessando os espanhóis.

Consequências da sua conversão

Antes de começar a pregar a verdade redescoberta, ele entende que deve dar o exemplo de deixar os seus indígenas livres; e assim o realiza de fato, com a angústia de prever que certamente cairão em mãos menos humanitárias. Por isso, pede que sejam entregues ao seu amigo Rentería. Renuncia a possuir indígenas, declarando-o perante o governador Diego Velásquez, que fica admirado “de uma coisa tão nova e um tanto monstruosa”, quase incrível num clérigo com fama de ter boas condições e perto de ficar rico. Que pensassem assim alguns pobres frades, era uma loucura compreensível; porém que agisse assim um fazendeiro com encomenda civil, embora clérigo, era “como se o tivesse visto realizar milagres” e isto era “considerado pelo sumo argumento de que poderia ser considerada santidade”. Isto aparece assim, como comenta lucidamente Las Casas, porque “tamanha era e é a cegueira dos que vieram para estas bandas”. Contra estas profundas trevas do espanhol conquistador e fazendeiro com encomendas, e mais especialmente contra a cegueira (que é ignorância em alguns e obstinação voluntária em outros) dos responsáveis últimos (os governadores e juízes da área e os membros do Conselho das Índias especialmente) lutará Las Casas, durante toda a sua vida, com palavras e escritos. No dia da festa de Assunção de Nossa Senhora, 15 de agosto de 1514, ele anunciou publicamente este seu compromisso com o governador.

No ano de 1515, com o apoio dos religiosos, vai até a Corte para tentar influenciar no centro das decisões e negocia com o Cardeal Cisneros, conseguindo a mediação dos Jerônimos (uma Congregação religiosa, da Ordem de São Jerônimo), que não cumprem com suas obrigações. Poucos anos depois, consegue novas longas negociações na Espanha; desta vez com os flamingos influentes, e Las Casas vai fazer uma experiência de evangelização e colonização pacífica em terras venezuelanas, junto aos frades dominicanos e franciscanos, lá pelo ano de 1520. Tornou-se um convertido que procurava conquistar os espanhóis para a causa de uma relação pacífica com os indígenas, preocupada em primeiro lugar pela conversão dos mesmos, que era o fim último da doação pontifícia. O problema de fundo, que ele não captava até então, é a grande contradição existente em pretender unir a dominação colonial com a evangelização cristã.

No começo, tenta de “comprar Cristo” ou o Evangelho, vendo que parece estar à venda, vendido a quem oferece mais; mas logo compreenderá que não se pode vender o Evangelho. Fonseca tinha dito que “com consciência bem tranquila estaria o rei, dando cem léguas que, sem nenhum ganho seu, fossem ocupadas pelos índios”; frase que Las Casa qualifica de “muito indigna de um sucessor dos Apóstolos”. Ao ver que “queriam me vender o Evangelho, e consequentemente Cristo,... concordei em comprá-lo”. Esforça-se então de conciliar o inconciliável: os interesses de Deus com a cobiça das riquezas. Sobrava-lhe ainda muito caminho para percorrer.

Esta foi somente a sua primeira conversão. Em 1522, ao se fazer dominicano, ele mesmo falará, agora sim, de conversão, pois efetivamente, compreendeu muito melhor o Evangelho e a liberdade da fé que os dominicanos pregavam; e não somente tirou as consequências, como também potenciou como poucos seus argumentos para a tarefa evangelizadora totalmente pacífica. Inclusive avançou logo e muito de pressa, sobretudo no tema da liberdade dos indígenas, depois que tinha passado muitos anos defendendo-os diante da Corte e diante dos próprios companheiros eclesiásticos.

 

Eduardo Frades

Caracas, Venezuela